Como parte da série sobre as prioridades do Brasil para enfrentar as mudanças climáticas, damos início a uma conversa sobre ambiente, sustentabilidade e energia, com enfoque nas questões relacionadas à água, um elemento crítico para a vida e o crescimento econômico. Artigo #1: O impacto do saneamento básico na saúde e na pandemia da Covid-19
Os últimos dois anos foram desafiadores para o Brasil e o resto do mundo com o impacto da pandemia causada pelo novo coronavírus. A crise sanitária mostrou, mais uma vez, os desafios enfrentados pelos países e comunidades emergentes. A falta de infraestrutura adequada, como serviços de saneamento e a ausência de suporte médico adequado, aumentou a distância entre as sociedades desenvolvidas e subdesenvolvidas. Nesse contexto, a agenda de mudanças climáticas ganhou ainda mais destaque no debate político e é igualmente legítima a preocupação mundial sobre como o governo brasileiro está respondendo a essas questões.
No entanto, o Brasil tem um enorme potencial para superar esses desafios. O país pode e precisa se tornar uma parte interessada ativa, acelerando os esforços internacionais de combate às mudanças climáticas e, ao mesmo tempo, cumprindo os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU. Esta série de artigos e debates tem como objetivo trazer à tona três dos principais gatilhos da agenda do Clima e Desenvolvimento Sustentável para o Brasil, combinando uma visão de especialistas locais e internacionais, trazendo casos de sucesso e soluções práticas para os principais temas relacionados à água, energia e mudanças climáticas. Os artigos serão publicados em uma parceria entre os autores, o Instituto CLP e o Virtù News.
Artigo de Luana Tavares e Andrei Covatariu
Siga a água! Este foi um dos famosos temas usados pela Nasa, para as primeiras explorações de Marte. O site da agência espacial americana oferece uma explicação simples e direta do lema: “A água é a chave para a vida como a conhecemos”.
Na Terra, a água é sinônimo de disponibilidade de alimentos, geração de energia, comunidades prósperas e vastas atividades econômicas. Por outro lado, a escassez e a má gestão da água estão causando conflitos, ondas de migração ou problemas de saúde significativos, apenas para citar alguns dos desafios.
A vida como a conhecemos depende apenas de 0,75% da água disponível no planeta, já que 97,5% dos recursos hídricos são constituídos de água salgada, enquanto o 1,75% restante é água congelada. Por essas razões e também porque a distribuição geográfica varia enormemente de um continente para outro, a escassez de água está afetando cerca de 40% da população global. As previsões da Organização das Nações Unidas (ONU) são surpreendentes: 25% da população mundial enfrentará alguma forma de escassez de água até 2050. Por essas razões, a ONU está se concentrando no acesso à água, qualidade da água e saneamento adequado, através de um dos mais importantes Objetivos do Desenvolvimento Sustentável: Água Potável e Saneamento.
A escassez de água e as condições inadequadas de saneamento estão causando problemas de saúde profundos e duradouros. Por mais surpreendente que possa parecer, 1 em cada 4 estabelecimentos de saúde em todo o mundo não tem serviços de água, enquanto chocantes 2,5 bilhões de pessoas não têm acesso a instalações de saneamento básico, como banheiros e latrinas. As consequências? Mais de 80% das águas residuais associadas às atividades humanas não são tratadas, resultando em um número diário de 1.000 crianças que morrem de doenças diarreicas evitáveis relacionadas com a água e o saneamento.
Segundo dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), 34 milhões de brasileiros vivem sem água potável e 100 milhões não têm acesso a esgotamento sanitário adequado. Consequentemente, dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) mostram que cerca de 15.000 brasileiros morrem a cada ano, enquanto outros 350.000 são hospitalizados por falta de saneamento adequado.
O impacto da falta de saneamento na saúde e a pandemia
O Brasil está acima da média global em mortalidade infantil e hospitalizações entre adultos e crianças. Embora esses resultados estejam ligados a muitos fatores sociais, um dos mais importantes é a grave falta de acesso a serviços de água e saneamento de qualidade. Adicionalmente, em estudo publicado por pesquisadores da Universidade Federal do Pará sobre os determinantes sociais da saúde e da atenção básica no controle do Covid-19 na cidade de Belém, foi demonstrado que em junho de 2020 a taxa de mortalidade no estado e a região norte era mais do que o dobro da taxa nacional. Posteriormente, esses números foram afetados por vários fatores contextuais, especialmente a taxa de testagem e o nível de aplicação das medidas de restrições sociais. Assim, ainda não é possível avaliar empiricamente o real efeito da falta de saneamento nos resultados do Covid-19.
No entanto, embora a Covid-19 seja transmitida principalmente de pessoa para pessoa através de gotículas respiratórias e vias contagiosas, há confirmação de que ele está presente nas fezes humanas. Assim, as rotas de contaminação fecal-oral também devem ser uma preocupação em países em desenvolvimento com sistemas de saneamento insuficientes, como o Brasil. Muitas variáveis sociais — como condições de moradia, densidade populacional, atenção primária à saúde, más condições de água e esgoto — têm uma importante contribuição para a exposição da população vulnerável ao novo coronavírus.
Resultados recentes apresentados pela Pesquisa Nacional Continuada por Amostra de Domicílios (PNAD), referentes às condições de saneamento básico no Brasil em 2019, demonstram necessidades atuais não resolvidas. A rede geral de distribuição de água, que atendia 85,8% dos domicílios em 2016, permaneceu em 85,5% em 2019. Mesmo que novos domicílios fossem construídos neste período (assim, o número absoluto de instalações habitacionais aumentou), o ritmo de implantação de serviços de água decente ainda não é alto o suficiente.
No Ranking de Competitividade de Municípios divulgado pelo CLP, o capítulo relacionado à provisão de saneamento e meio ambiente mostra as claras desigualdades que as cidades do Brasil apresentam nesse quesito. Entre as 50 melhores cidades da categoria, Santos (SP) ocupa a primeira posição, enquanto outras 32 cidades estão localizadas no estado de São Paulo. Apenas duas são da região Nordeste: Vitória da Conquista (BA) e Campina Grande (PB). Somente 27% da população vive em municípios onde o abastecimento foi considerado satisfatório. A distribuição da água entre os níveis de renda também é muito desequilibrada, já que 40% da população não atendida ganha um salário mínimo ou menos.
A relevância de uma infraestrutura de saneamento adequada para a situação de saúde também foi destacada no Painel de Saneamento do Brasil, desenvolvido pelo Instituto Trata Brasil. Estima-se que a taxa de internações hospitalares no Brasil por doenças de veiculação hídrica por 10 mil habitantes atingiu 13,01 em 2019, o que corresponde a 0,7% do total de gastos do Sistema Único de Saúde (SUS) com internações. Água e saneamento inadequados correspondem a 40% das mortes infantis por diarréia no país (quadro 1). O rotavírus é a principal causa, seguido pela Shigella e Salmonella.
As principais barreiras para superar a falta de saneamento adequado são a capacidade de articulação do governo e a vontade política, pois se trata de uma questão que requer pesados investimentos e mais de um ciclo político para ser totalmente enfrentada. O Plano Nacional de Saneamento Básico (PLANSAB) estima que o Brasil precisa investir R$ 26 bilhões por ano (cerca de 0,4% do PIB), nos próximos 13 anos, para levar água tratada a 99% da população e ampliar a cobertura do esgoto para 92% das residência até 2033. Porém, nas últimas duas décadas, o Brasil investiu apenas R$ 12 bilhões ao ano, principalmente nas regiões Sul e Sudeste. É difícil compreender a falta de recursos aplicados no setor, uma vez que, segundo a OMS, para cada R$ 1 investido em saneamento básico, R$ 4 são economizados em gastos com doenças relacionadas à falta de água tratada e esgoto.
Para construir adequadamente uma solução viável e eficaz para essa questão sistêmica e complexa, é crucial ter uma abordagem intersetorial, envolvendo o setor privado, todos os três níveis de governo, além de órgãos públicos nas áreas de saúde, educação, ambiente, infraestrutura e desenvolvimento econômico. Além disso, é fundamental ter visão de curto e longo prazo. Algumas mudanças estruturais exigem um cronograma de implementação mais longo, que ultrapassa o ciclo político, mas são essenciais para erradicar a falta de saneamento no país. Isso vai diminuir o sofrimento da população brasileira, bem como a pressão sobre o sistema de saúde
Enfrentar o desafio requer um compromisso do estado e da sociedade como um todo. O novo Marco do Saneamento, sancionado em julho de 2020, é um passo importante nessa direção. Acabou o direito de preferência das companhias estaduais, abrindo o setor para o investimento privado e, em geral, mais eficiente, com a missão de universalizar o saneamento até o fim de 2033. É evidente o impacto que ineficiência desse serviço tem na saúde dos brasileiros. Os primeiros passos necessários para reverter o atraso também são bem conhecidos. Porém, a questão-chave que devemos nos colocar agora é: COMO implementar essas soluções com uma abordagem sistêmica e multisetorial, superando a resistência política e alcançando resultados para além do calendário eleitoral?
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Luana Tavares passou os últimos 15 anos se dedicando ao setor de impacto social no Brasil, trabalhando com diversas organizações sem fins lucrativos com foco no fortalecimento da democracia e eficácia do Estado. Desde 2016, ela dirige uma das organizações pioneiras e mais relevantes neste campo chamada CLP – Centro de Liderança Pública, que desde 2008 formou mais de 8.000 líderes públicos em todo o Brasil e está informando e engajando a sociedade na defesa de uma agenda nacional estrutural com o Congresso Nacional. Luana também é conselheira do Vetor Brasil e do Poder do Voto – duas organizações de impacto social focadas em aumentar a capacidade do Estado por meio de uma melhor gestão de pessoas e fortalecimento da participação cívica, respectivamente. Luana é graduada em publicidade, possui MBA – Mestre em Administração de Empresas (Fundação Getúlio Vargas – FGVSP) e possui duas especializações internacionais, uma em gestão pública e outra em desenvolvimento de liderança, na Harvard Kennedy School e na Oxford University. Ela está atualmente com licença acadêmica de um ano, morando no Reino Unido para concluir um Mestrado em Políticas Públicas (MPP) na Blavatnik School of Government – Oxford University.
Andrei Covatariu é Pesquisador Associado Sênior do Grupo de Política Energética e especialista da Força-Tarefa sobre Digitalização em Energia da Comissão Econômica das Nações Unidas para a Europa (UNECE). Andrei foi Chefe de Relações Públicas da Enel Romênia (2019-2020), anteriormente ocupando vários cargos dentro da empresa de serviços públicos (2014-2019). Ele também foi membro do Conselho da comunidade FEL-100 (World Energy Council, Londres), um bolsista não residente em 2020 no Middle East Institute (Washington DC) e um 2021 GYCN Climate Ambassador (uma iniciativa do Grupo Banco Mundial). Andrei é bacharel e mestre em Engenharia Nuclear (Universidade Politécnica de Bucareste) e mestre em Administração de Empresas (Academia de Estudos Econômicos de Bucareste). Ele está atualmente finalizando um mestrado em Políticas Públicas (MPP) na Blavatnik School of Government, University of Oxford, com um Summer Project realizado no Belfer Center for Science and International Affairs – Gerenciando o Projeto Atom da Harvard Kennedy School.