Desequilíbrio fiscal, adiamento de reformas estruturantes, protecionismo, ausência de ambiente regulatório favorável aos negócios e de boa gestão pública levaram a Argentina à estagnação econômica e à hiperinflação. Há quem diga preferir a cepa populista peronista de Alberto Fernández, do que viver sob a cepa populista reacionária de Jair Bolsonaro. Brasileiros e argentinos merecem coisa melhor.
A Argentina encerrou 2020 com uma inflação de 4% ao ano? Não. Ao mês. Esse foi o índice registrado em dezembro. A inflação anual ficou em 36,1%. O índice oficial, contudo, teria sido bem mais elevado se não fossem os controles de preços do governo do presidente Alberto Fernández.
Para 2021, a previsão média dos analistas econômicos do país é de um reajuste nos preços ao redor de 50%. Mas as estimativas não passam de chutes, porque o grau de imprevisibilidade é enorme.
A política econômica argentina é uma viagem ao passado. Faz lembrar o Brasil dos anos 1980. Um governo quebrado e sem credibilidade internacional para contratar novas dívidas sobrevive graças à emissão de dinheiro. A consequência é o aprofundamento dos desequilíbrios e a perda total de confiança não apenas dos investidores, mas também dos empresários e de toda a população. A inflação tenderá a subir ainda mais, e o crescimento econômico permanecerá medíocre.
Alguns especulam se a Argentina pode ser a próxima Venezuela. A Argentina, contudo, está apenas sendo a Argentina, no seu triste ciclo monótono ao redor de ideias equivocadas que não a levam a sair do lugar. A respeito disso, afirma o economista Eduardo Levy Yeyati, reitor da faculdade de administração pública da Universidade Torcuato di Tella, em artigo publicado no site Americas Quarterly: “Há muita discussão na Argentina a respeito do receito de o país se tornar uma ‘nova Venezuela’. Não creio que seja o caso. Mas o país vai lentamente se movendo da armadilha da renda média para um novo tipo de equilíbrio, um que é totalmente argentino”.
Desequilíbrio fiscal
Como explica Levy Yeyati, a falta de reservas em pesos faz com que o país financie seu profundo desequilíbrio fiscal de duas maneiras: inflação e repressão financeira (controles cambiais e juros reais negativos, ou seja, abaixo da inflação). Essa combinação pune os poupadores, que veem as suas economias em pesos perder valor. O efeito é uma socialização gigantesca das estripulias populistas do governo. A moeda argentina, ao fim, não possui credibilidade. Quem pode se protege comprando dólares – mas, como os preços e as negociações são controladas pelo governo, os argentinos buscam refúgio no mercado paralelo.
Pelo câmbio oficial, US$ 1 vale 86 pesos. Já no câmbio paralelo US$ 1 vale 151 pesos. Em um mercado normal e funcional, uma mesma mercadoria não pode ter preços tão díspares. Mas a Argentina, como o Brasil nos anos de hiperinflação, não é um mercado normal e funcional. A divergência das cotações, que vem se mantendo ao redor de 80%, não era tão elevada desde os anos 1980.
A inflação se mantém elevada e em trajetória de alta, apesar dos seguidos controles de preços e de outras medidas regulatórias. Houve restrição a exportações de grãos e de carne. Uma cesta de produtos considerados essenciais tem os preços tabelados, como no Brasil de 40 anos atrás, e as tarifas de serviços como a telefonia estão congelados.
No ano passado, o dinheiro em circulação aumentou 27%. De acordo com o Instituto Internacional de Finanças (IIF), a organização internacional dos bancos privados, nos demais países emergentes o aumento médio ficou em 8%, um número elevado e justificado pelo combate à crise da pandemia, mas muito distante do ritmo frenético de impressão de dinheiro da casa da moeda argentina. Sem credibilidade para emitir títulos públicos, resta ao governo imprimir dinheiro para pagar as suas contas. É a receita para a hiperinflação.
Falta de ação
Em 2015, a eleição de Maurício Macri trouxe a expectativa de ajustes e normalização da economia. Mas as reformas foram tímidas e lentas, o aperto nas contas públicas foi gradual demais, os desequilíbrios fiscais se mantiveram, a inflação continuou elevada e o crescimento econômico decepcionou. Macri foi punido pelo gradualismo e perdeu as eleições para Fernández, em 2019. De quebra, Cristina Kirchner, a ex-presidente acusada de corrupção em série e responsável por ter quebrado com seu populismo peronista, voltou ao poder, agora como vice de Fernández.
O tabelamento da cesta de produtos básicos, a propósito, teve início no governo de Cristina Kirchner, que reeditou a antiga cartilha de congelamentos tão comum entre os países latino-americanos. Não funcionou no passado nem nunca funcionará. É uma política típica populista: permite negociatas com grupos de específicos e, ao mesmo tempo, cria a ilusão de proteção pelo governo. Macri flexibilizou o controle de preços e reduziu a lista de produtos monitorados, mas, no final de seu mandato, apelou para os congelamentos na tentativa de se reeleger. Em vão. Desestabilizou a economia e perdeu a eleição.
Controle de mercado
Desde que tomou posse, Fernández e sua equipe tiram diariamente da cartola algum novo controle do mercado. No ano passado, por exemplo, criaram a Lei das Gôndolas para diminuir a presença dos grandes fabricantes nos supermercados e favorecer os pequenos produtores. Diz a lei: as mercadorias de uma mesma marca podem ocupar até 30% das prateleiras. Os pequenos e médios fornecedores devem ter acesso a pelo menos 25% da área de exposição. Tem mais: 5% da área deve ser reservada a produtores familiares, indígenas e cooperativas populares. Os produtos mais baratos devem estar no centro, em destaque, e, nos sites, devem aparecer no topo da página. Os preços serão monitorados e muitos deles são controlados. Assim, o governo espera incentivar a competição e conter a inflação. Valer ler um pequeno trecho da justifica elencada pelo governo no decreto: a lei tem a “finalidad de evitar que realicen prácticas comerciales que perjudiquen o impliquen un riesgo para la competencia u ocasionen distorsiones en el mercado”.
Não vai dar certo, mas os favorecidos pelo protecionismo agradecem. A lei passou por novas regulamentações recentemente. Ficou decidido que a legislação vale apenas para os estabelecimentos com uma área mínima superior a 800 metros quadrados. Podemos já imaginar os fiscais do Fernández, munidos de trenas, checando as dimensões dos supermercados. Mas atenção: os 800 metros devem ser medidos a partir do limite dos caixas. Não entra no cálculo a área dos depósitos. Uma das dificuldades das empresas e dos mercados é saber exatamente quais produtos estão ou não dentro do monitoramento, em qual categoria eles se encaixam exatamente, porque muitas vezes a classificação é contraditória. Sem falar nos lobbies de certos setores para serem poupados do tabelamento.
As leis básicas da economia continuam a ser uma miragem na Argentina, e, em meio às incertezas, os desequilíbrios se avolumam. O setor de construção civil, favorecido pelos juros baixos e pela falta de confiança na moeda, está em alta. Melhor investir num ativo fixo do que manter reservas nos bancos. Mas o superaquecimento nas obras imobiliários provoca escassez de materiais e alta nos preços. O governo, então, ameaça as empresas com novos controles e regulações. Qual o risco? Acontecer algo parecido com o que ocorreu nas telecomunicações. As tarifas dos telefones estão congeladas, apesar da inflação galopante.
Há duas semanas, a associação das empresas de telefonia divulgou uma nota na qual revela “profunda preocupação por causa da sucessão de decisões em matéria regulatória, que ameaçam a sustentabilidade da indústria que deveria ser considerada estratégica para o desenvolvimento do país” e que a “situação na Argentina é uma anomalia na região, o que gera inquietude entre operadoras, investidores, provedores e usuários de todo o ecossistema digital”. Por fim, alerta que todas as empresas serão penalizadas se expostas aos riscos de uma piora nos serviços e menor cobertura da banda larga.
É de causar espanto que o modelo argentino seduza tanta gente no Brasil. A crise eterna no país vizinho demonstra cabalmente as consequências de não se respeitar minimamente as leis básicas da economia. As limitações fiscais e produtivas cedo ou tarde vão se impor. Crescimento econômico depende de estabilidade econômica, ambiente regulatório favorável aos negócios, mão de obra capacitada, boa gestão pública. Sem reformas estruturais, a Argentina — assim como o Brasil, diga-se – viverá ciclos repetidos de esperanças e decepções.
No final do ano passado, a aprovação legalização do aborto pelo Congresso da Argentina foi comemorada nas redes sociais de toda a América Latina. Com razão. Muitos brasileiros chegaram a dizer que prefeririam Buenos Aires ao risco de retrocesso no Brasil. O desabafo é compreensível, mas não vale a pena substituir a cepa populista reacionária de Jair Bolsonaro pela cepa populista peronista de Alberto Fernández. Brasileiros e argentinos merecem coisa melhor.