Quando a falta de esperança da estagnação econômica se transforma em convulsão social.
Metade das pessoas de menor renda no Chile ganha mais do que o dobro do salário mínimo pago no Brasil. Os chilenos trabalhadores urbanos gastam 8% do seus rendimentos em transporte. Os brasileiros gastam 18,5%. A explicação para a explosão de protestos, principalmente, na capital, Santiago, tem sido o aumento das passagens do metrô de 800 para 830 pesos. No Brasil equivaleria passar de 4,63 para 4,80 reais —ou seja, aumento de 17 centavos. O paralelo mais próximo do caso chileno foram os protestos disparados por um aumento de 20 centavos no preço das passagens de ônibus em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Recife, que, em 2013, no governo Dilma Rousseff, paralisaram o Brasil. Na erupção social no Brasil, oito pessoas morreram e 2.600 foram presas. No Chile, já morreram 11 pessoas e 700 estão detidas. A destruição de patrimônio público só no metrô de Santiago passa de 800 milhões de dólares. Tudo isso por centavos? Foi tudo fruto da loucura das multidões? Não. Tanto no Brasil de 2013, quanto, agora, no Chile, os centavos foram a última palha que arriou o cavalo.
Paralelos da explosão no Chile de 2019 e no Brasil de 2013
Quase sempre nesses casos há uma combinação de leitura errada dos sentimentos populares e excesso de confiança que leva à arrogância, percebida ou real por parte do governo. Dá no mesmo. O efeito é ira coletiva espontânea. “Quem quiser pagar menos que madrugue”, disse Juan Andrés Fontaine, ministério da Economia do Chile, referindo-se ao fato de que a tarifa do metrô é mais baixa antes do horário de pico. É verdade, mas esse tipo de reação inflama mais ainda os descontentes. Foi o que aconteceu, resultando em manifestações populares ainda mais violentas e espontâneas tão incontroláveis que o presidente Sebastián Piñera foi levado a decretar toque de recolher na capital e, horas depois, cancelar o aumento das passagens no metrô. Pouco adiantou o presidente voltar atrás. O estrago estava feito. Embora menos turbulentos, os protestos continuaram.
Muito parecido com os protestos do Brasil em 2013 e, diferentemente do que ocorreu no Equador há poucos dias, os protestos chilenos, até agora, não dão pistas de terem sido organizados por partidos de esquerda, ora na oposição. Os manifestantes não obedecem palavras de ordem partidárias ou ideológicas. Obedecem hashtags no Twitter, convocando para manifestações relâmpagos. Partidos e políticos de esquerda tentam, sem sucesso aparente, se beneficiar da insatisfação. Grupos extremistas podem ter sido os autores das ações mais destruidoras, especialmente os atentados contra as composições, as instalações do metrô e os ônibus. Os setores de inteligência do governo chileno investigam essa possibilidade, pois observaram semelhança muito grande nos métodos dos incendiários.
A estagnação econômica é uma panela de pressão
Observados de um ângulo mais aberto, o fenômeno que abala o Chile tem como causa mais profunda a estagnação econômica precedida de duas décadas de avanços. Essa doença é bem conhecida e, em inglês, foi batizada de “middle income trap” — ou “armadilha da renda média”. Nesse caso, o significado de armadilha é menos o de um ardil e muito mais de algo que impede a progressão, de alguém que corria e caí em um buraco do qual não consegue sair. É uma situação psicologicamente mais aceitável para uma pessoa ter nascido e vivido toda a vida em um país pobre e que nunca experimentou momentos de euforia econômica. Os chilenos viram as coisas melhorarem por décadas, mas, de repente, sentiram que o modelo não consegue funcionar com o mesmo ímpeto e que não parece haver saída. Essa sensação de ter caído em uma armadilha gera pressões sociais poderosas que, se não forem percebidas a tempo, explodem nas ruas.
Não é a desigualdade que faz romper o contrato social nas democracias — é a falta de oportunidades, a percepção de que estão bloqueados os caminhos da mobilidade social para cima. Durante muitos anos, o Chile foi o campeão regional de mobilidade social. Segundo dados do Banco Mundial, entre 1992 e 2009, 60% dos chilenos conseguiu um “upgrade” de uma classe social para outra mais alta. É natural que as pessoas esperem que esse processo de melhora continue para sempre. É isso que esperam dos seus governantes. Para terminar também com uma comparação com o Brasil, quase nesse mesmo período (1990 a 2009) mais da metade dos brasileiros também mudaram para uma classe acima. Pois bem, de 2011 a 2020, informa um estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV), com crescimento médio de 0,9%, o Brasil terá tido sua pior década econômica em 120 anos. Sem reformas que nos libertem da “armadilha da renda média”, o Brasil também explode.