Artigo de Daniel Duque | Mestre em economia pela UFRJ e doutorando pela Norwegian School of Economics. Trabalha como Head de Inteligência Técnica no CLP e pesquisador no Ibre/FGV
A pandemia trouxe a oportunidade de o Brasil focalizar, simplificar e tornar a política social do País mais eficiente. Hoje, os mais necessitados de proteção são os trabalhadores informais. Há boas propostas sobre a mesa.
O Brasil de raízes coloniais e escravistas naturalizou em sua sociedade características dificilmente aceitáveis. Até os anos 90 (entre vinte e trinta anos atrás), por exemplo, era naturalizado que ¼ das crianças de 7 a 14 anos não frequentasse qualquer instituição de ensino, assim como metade dos adolescentes de 15 a 17.
Da mesma forma, até 2019, aceitava-se naturalmente que 15% das crianças brasileiras entre 0 e 14 anos vivesse abaixo da linha da pobreza do Banco Mundial, de US$ 1,90 por dia – isto é, pouco mais do que R$ 150 por mês –, mais que o dobro da média geral (6,6%).
A pobreza na pandemia
Apesar de ter destruído mais de 10 milhões de empregos, dos quais 2 milhões com carteira assinada no setor privado, a pandemia, também fez com que o governo aprovasse o Auxílio Emergencial, o maior programa social já realizado em um determinado espaço de tempo. No último mês de agosto, a proporção da população vivendo abaixo da linha da pobreza chegou a 2,3% – não chegando a 3,5% para crianças de 0 a 14 anos.
No entanto, o Auxílio Emergencial tem prazo de validade, que está logo ali. Foi reduzido pela metada e a partir de setembro, passou de R$ 600 para R$ 300, e será finalizado até dezembro. Com algumas hipóteses simplificadoras (que podem ser vistas no Blog do Ibre), é possível projetar que, em setembro, a pobreza extrema chegará a 5%, mais que o dobro da registrada no mês anterior. Com o fim do programa, a tendência é tal nível superar o de 2019, que já era o mais alto registrado desde 2012.
O Brasil tem, portanto, a grande oportunidade de desnaturalizar seus altos percentuais da população vivendo abaixo de níveis mínimos de condições de vida. Para isso, é preciso reformar a política social do país, a fim de focalizá-la, simplificá-la e, no médio prazo, aumentar seus recursos.
Trabalhadores informais precisam de proteção
O setor público brasileiro não gasta pouco com transferências de renda de cunho social. Somando-se os recursos do Bolsa Família, BPC, Seguro Defeso e Abono Salarial, tem-se um volume de recursos de cerca de R$ 110 bilhões anuais, quase 1,5% do PIB. A fim de se compreender o tamanho do montante, se ele fosse dividido entre os 50 milhões mais pobres do país, haveria a possibilidade de transferir cerca de R$ 180 por mês para cada um.
Mais da metade desses recursos é destinada a idosos e trabalhadores formais com rendimentos próximos ao salário mínimo. A pobreza extrema, no entanto, é associada no Brasil a crianças e trabalhadores informais, de modo que hoje grande parte da rede de proteção social brasileira é mal focalizada – o que não significa que as primeiras categorias não devam ter direito de receber transferências.
Os trabalhadores informais são impactados pela grande volatilidade de seus rendimentos. Por isso, estão mais vulneráveis à pobreza e sofrem mais fortemente com a pandemia. Hoje, eles são o grupo que mais necessita de uma grande mudança na política social brasileira. Apesar de transitarem pela linha de pobreza extrema, os informais, em geral, estão acima da linha de elegibilidade do Bolsa Família e estão, portanto, excluídos da proteção do programa, como mostra o gráfico abaixo.
Desenhado para atingir os trabalhadores informais, e mesmo sem grande limite de renda de elegibilidade, o Auxílio Emergencial também mostrou atingir os mais pobres. Além de permitir acúmulo de dois benefícios para mães solteiras, seus recursos acabaram “naturalmente” se focalizando.
Propostas de reforma
Felizmente, há hoje diversas propostas de reforma para nossas políticas sociais na mesa. O Programa de Responsabilidade Social, desenhado pelos economistas Fernando Veloso, Vinicius Botelho e Marcos Mendes, apresenta várias medidas para reduzir a vulnerabilidade de trabalhadores informais, estimular a permanência escolar de adolescentes e desenvolver jovens talentos nas Olimpíadas de Matemática, com os recursos vindo do Abono Salarial. Alternativamente, a senadora Eliziane Gama propõe uma Renda Básica para crianças, que teria valor maior para famílias pobres – com os recursos vindo de novos impostos progressivos.
Independentemente do caminho a ser seguido, o Brasil não pode voltar a naturalizar suas altas taxas de pobreza extrema após o Auxílio Emergencial. A política social não pode perder o foco das discussões da sociedade. As velozes mudanças no mercado de trabalho mundial, aceleradas pela pandemia, aumentaram sua necessidade.