O grande desvio da operação foi se deixar encarar como fruto da ação de heróis.
Iniciada em 2014, a Operação Lava Jato terá seu lugar marcado na história contemporânea do Brasil como um ponto de inflexão no combate à corrupção. O gigantismo do esquema de desvio de recursos públicos descoberto pelas investigações, as punições aos culpados e a recuperação bilionária de dinheiro roubado colocou o controle da corrupção em um patamar nunca antes atingido. A Lava Jato, porém, não teve geração espontânea. As condições institucionais necessárias para seu advento começaram a ser criadas com a promulgação da Constituição de 1988. Vale notar que as ferramentas criadas pelos constituintes e que permitiram à Lava Jato ser tão bem-sucedida foram as mesmas que chancelam os exageros e, para alguns, os abusos da operação. O texto constitucional de 1988 permitiu a maior integração dos órgãos do Poder Judiciário e do Ministério Público.
Leis contra o crime organizado e a corrupção após 1988
As leis votadas em seguida pelo Congresso Nacional com o objetivo de dar existência prática aos preceitos pavimentaram o caminho para as operações pioneiras que precederam a Lava Jato. Essas operações, Castelo de Areia e Banestado, foram retumbantes fracassos pela ausência de resultados, mas serviram de ensaio geral das novas armas legais contra o crime organizado e a corrupção. A Lei de Crimes de Lavagem de dinheiro, sancionada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em 1988 instituiu o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). Treze anos mais tarde, em 2003, durante o Governo Lula, foi instituída a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (Enccla), a principal rede de articulação de órgãos dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. No ano seguinte, nasceu o Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI), órgão subordinado à Secretaria Nacional de Justiça (Senajus) do Ministério da Justiça e Segurança Pública, que fechou o cerco ao dinheiro dos corruptos mandados para fora do Brasil.
Entre as inovações institucionais que criaram as bases legais para o sucesso da Lava Jato estão a nova Lei de Lavagem de Dinheiro (2012) e a Lei das Organizações Criminosas (2013). Ambas deram mais força aos órgãos de controle ao incluir o recurso da colaboração premiada. Até agora, a Lava Jato já assinou 184 termos de colaboração, que ajudaram a dar pistas cruciais para desarticular os esquemas de corrupção na Petrobras, envolvendo partidos, empreiteiros e lideranças políticas.
2005: os primeiros efeitos da mudança nas leis
Os primeiros efeitos da mudança de percepção das instituições em relação à corrupção ocorreu já no escândalo do Mensalão, em 2005, a primeira e mais forte consequência do fortalecimento dos órgãos de controle pós-88. Um novo padrão de atuação institucional começou a aparecer ali, com a condenação de toda a cúpula do partido governante, o PT, e seus aliados na elite parlamentar e financeira do Brasil.
Todo o esforço do ponto de vista institucional surtiu efeitos para além da Lava Jato. O Ìndice da Capacidade de Combate à Corrupção (CCC, sigla em inglês) entre os países da América Latina, indicador criado e divulgado recentemente pela Americas Society and the Council of the Americas, mostra o Brasil atrás apenas do Chile. Ao contrário de outros indicadores que medem a percepção sobre a corrupção, o CCC analisou 14 variáveis entre os países pesquisados, entre elas, aspectos jurídicos que ajudam no combate à corrupção, como a independência do Judiciário e demais órgãos de controle. Foram bem avaliados ainda a força do jornalismo investigativo e o nível de de recursos disponíveis para combater o crime do colarinho branco, e o apoio da sociedade na agenda anticorrupção.
O entendimento do STF sobre Foro privilegiado
Às revoluções na Constituição e nas leis ordinárias, a mudança se somou o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o foro privilegiado. Essa inovação permitiu remeter para a primeira instância cerca de 450 processos abertos para apurar crimes cometidos por políticos que, de outra maneira, ficariam sem solução nos escaninhos engarrafados do STF.
Mais recentemente, o pacote anticorrupção, enviado para o Congresso Nacional no início do ano, oficializa a figura do “informante do bem”, popularizado entre nós muitos antes dessa iniciativa pelos filmes policiais americanos com denominação em inglês “whistleblower”. A previsão legal de um informante infiltrado nas organizações criminosas amplia os recursos dos órgãos na apuração de esquemas complexos de corrupção. A base teórica clássica para a criação de crescentes ferramentas persecutórias é o aumento dos custos da deliquência. Nada detém mais um criminoso do que o alto custo embutido na certeza da punição severa.
O desafio da Lava Jato
O grande desafio colocado pelo sucesso da Operação Lava Jato é a manutenção dos ganhos institucionais que, como vimos, permitiram sua articulação. Para isso é essencial que a avaliação geral seja a de que esses ganhos superam em muito os exageros cometidos em certas fases da operação.
Diz o jurista Pedro Abramovay: “O maior ganho da Lava Jato foi revelar esquemas monstruosos de corrupção. Foi demonstrar como funcionava a relação espúria entre grandes empreiteiras e o Estado brasileiro. Seu grande desvio foi se deixar encarar como fruto da ação de heróis de carne e osso. Essa é uma noção anti-republicana.
A República, no seu funcionamento normal, exige que os crimes sejam apurados e punidos dentro do estrito respeito aos limites da lei pela atuação de pessoas se desincumbindo de tarefas puramente institucionais. Acho que a sociedade colou nos atores da Lava Jato efígies de heróis inatacáveis. Isso é ruim. É inadequado também permitir que as críticas à Lava Jato escondam o mérito de suas conquistas na luta contra a corrupção. A Lava Jato não pode pairar acima do bem e do mal. Ela errou quando eventualmente se colocou nessa situação ou foi percebida assim. Erro maior, porém, seria, sob esse pretexto, aceitar a volta dos esquemas de corrupção absolutamente gigantescos que existiam na Petrobras e na relação das grandes empreiteiras com o Poder Público.”