João Doria promete ter uma mulher de vice caso vença as prévias do PSDB para disputar a Presidência. Mas o partido, assim como a grande maioria, segue longe de ser uma legenda inclusiva. Aumento na pluralidade de gênero na política não é gesto de benevolência, é parâmetro elementar de decência
Artigo de Humberto Dantas
Indiscutivelmente a política é um universo machista. Estudos não faltam para atestar essa característica, e negá-la é se equiparar a terraplanistas e negacionistas que nos atormentam na interpretação da realidade. Esse cenário não se restringe ao Brasil, mas sim caracteriza boa parte do mundo pretensamente democrático. Fosse essa afirmação mentirosa, e tal fenômeno indigno de atenção, a ONU não se esforçaria tanto para disseminar a ideia e o compromisso de que política é, sim, espaço para mulheres. Outros movimentos e exemplos não faltam.
No Brasil, tem partido com esse nome: Partido da Mulher Brasileira. Tão facilmente associado ao fisiologismo que bastou um aceno do presidente Bolsonaro à micro legenda, e o desprezo dele pelo tema, que em abril de 2021 o PMB passou a se chamar Brasil 35 para acolher o machista mor. O nome e a filiação presidencial não prosperaram, mas não duvide que essa possa ser a solução às mãos de Jair e seu séquito para o pleito do próximo ano.
Tem também partido em que as mulheres fazem questão de conquistar espaço na raça. Vão se igualando, abrindo vagas, vencendo barreiras internas – tem legenda que até em estatuto garante certas igualdades. Mas infelizmente um cenário de equilíbrio absoluto não é fácil de se ver, e para além de aprovarmos leis que buscam impor certa paridade de gênero, é indiscutível que a justiça interpreta de forma bastante criativa e progressista alguns tópicos, o que finda ajudando. Bom? Para a causa sim, mas esse tipo de artificialidade jurídica precisa ser medida da seguinte maneira: será capaz de mudar o ambiente ou apenas de asfixiar o machismo? Se a ponto de exterminá-lo, seria ótimo. Mas não é isso que vemos em nosso país: valor afogado quando volta à tona para buscar ar o faz de maneira violenta, virulenta e intensa. Basta ver quem ocupa o poder hoje. A turba de frustrados que transforma ódio em discurso sob o manto fantasioso e asqueroso de “liberdade de expressão” é exemplo emblemático e insano.
Pois bem, nesse final de semana, em mais uma de suas investidas para ganhar as prévias do PSDB, o governador de São Paulo, João Doria, afirmou que se escolhido terá uma vice mulher em sua chapa presidencial. Média ou valor absorvido? O histórico indica que média: Doria, que até 2016 dizia não ser político e adorava posar de “gestor trabalhador”, completará a terceira participação eleitoral em seis anos. Teve como vices Bruno Covas e Rodrigo Garcia. Percebe? Novas estratégias. Novas? O assunto não tem absolutamente nada de novo. Mas antes de seguir, lembremos que na machista Câmara dos Deputados prosperou trecho da reforma política que permite que os recursos eleitorais direcionados para candidatos com vice mulheres entrem na conta da cota mínima de financiamento de gênero. Ou seja: homem que “carrega” mulher pode fazê-lo por paridade de gênero e valorização da diversidade, mas terá consigo também, se o Senado aprovar a iniciativa, uma forma de burlar a distribuição de recursos.
Voltemos. No PSDB, acompanho faz anos a trajetória das mulheres em uma série de palestras, aulas e encontros para os quais costumo ser convidado pela Fundação Konrad Adenauer. Percebi de forma muito próxima o quanto lutam para vencer os mais significativos desafios dentro da legenda em busca de espaço. Nunca foi fácil, tampouco é e continuará não sendo. O PSDB é uma legenda comum quando o assunto é a inserção da mulher na política. Tem excelentes exemplos de grandes lideranças, possui um grupo aguerrido de mulheres, mas tem a capacidade de as abafar de forma usual. Uma pena. Está longe de ser uma legenda inclusiva e plural no sentido mais amplo. Mas qual legenda é assim?
À esquerda as mulheres se dão melhor no Brasil – mas o termo “melhor” é relativo, e não significa que seja “ótimo”. E fico aqui com as percepções de amigos alemães sobre o assunto: como pode a questão de gênero ser uma pauta com marcação ideológica? A resposta mais simples seria: esquerda e direita é algo que pode se debater, também, por uma lógica de progressistas versus conservadores. E nesse caso, “tradicionalmente” o lugar da mulher não é na política. O do homem, sim. Que coisa medonha.
Paciência – e muita luta. E esperamos para ver a procura do PSDB por uma mulher, caso João Doria conceda o espaço de forma tão compromissada assim. No seu discurso em evento para tucanas no último sábado, um destaque chama a atenção: depois de citar políticas públicas destinadas a esse público, o governador disse que quase dois terços dos “postos diretivos, com força de comando em seu governo”, são ocupados por mulheres. É mesmo? O que significa isso não sei, mas apenas quatro dos 27 secretários listados na página oficial são mulheres (15%).
Discursos à parte, só esperamos não ter que ouvir, e provavelmente seus lapsos históricos não chegarão a tanto, que ele será o primeiro tucano a colocar uma mulher na condição de vice-presidente – o que marca a dificuldade do partido, uma vez que nenhuma foi apresentada para disputar as prévias da legenda para a posição de maior destaque. Lembremos que José Serra em 2002 teve consigo a capixaba Rita Camata (então PMDB), e Geraldo Alckmin em 2018 foi acompanhado pela senadora gaúcha Ana Amélia (PP). Digo isso porque dia desses o governador de São Paulo afirmou, ao Estadão, ter participado e vencido as únicas duas prévias partidárias para a escolha de candidatos na história do país, ignorando, a despeito de tantas legendas que fizeram isso desde 1988, o próprio PSDB paulistano em 2012. Paciência. De casuísmo eleitoral ao remédio para memória, que a gente assista a mais pluralidade de gênero na política. Isso não é gesto de benevolência, é parâmetro elementar de decência.
Humberto Dantas é doutor em ciência política pela USP e pós-doutor em administração pública pela FGV-SP. Coordenador dos programas de educação do Centro de Liderança Pública – CLP.