Ação que partiu do Supremo contra blogueiros e ativistas bolsonaristas não investiga a liberdade de expressão de um grupo: ela investiga uma operação complexa, de alta penetração, atuação permanente pelas redes sociais e talvez tocada com contribuição de verbas públicas. É um fenômeno novo que oferece perigo a pessoas e a instituições democráticas. O ideal é que tivesse sido trazida à luz por iniciativa do Legislativo ou da própria Polícia Federal. A ação partiu da Corte Constitucional brasileira. Esse é mais um ingrediente inédito e perturbador.
Um dos mais bizarros acontecimentos da Segunda Guerra Mundial pode ajudar a entender melhor a realidade brasileira atual. Em junho de 1942, um grupo de oito sabotadores nazistas desembarcou de submarinos alemães nas costas da Flórida e de Long Island. Sua missão era explodir o Empire State Building e outros arranha-céus símbolos do poder americano. Os agentes nazistas haviam morado nos Estados Unidos e falavam inglês com perfeição. Mas, mal treinados, foram detidos antes de agir e tiveram confiscado seu arsenal de armas pesadas e explosivos. Dois dos agentes alemães, John Dasch e Ernst Burger, foram presos quando tentavam se registrar com nomes falsos em um hotel de luxo em Nova York.
O episódio virou o grande assunto das rodas de políticos e alta autoridades em Washington. Numa delas, o presidente Franklin Roosevelt provocou o ministro da Suprema Corte, Hugo Black, que ele havia indicado há um ano: “Então, Black, esses sabotadores estão protegidos pela Primeira Emenda?” Black respondeu: “Se ao invés de armas e explosivos eles carregassem apenas panfletos de propaganda do regime nazista eles estariam protegidos pela Primeira Emenda.”
Hugo Black já firmara reputação como o mais intransigente defensor da interpretação literal da Primeira Emenda à Constituição dos Estados, aquela, que promulgada em 1791, estabeleceu que “o Congresso não fará nenhuma lei em relação a adoção de uma religião…ou para diminuir a liberdade de expressão ou de imprensa.” Sempre que os colegas de Suprema Corte se punham a examinar situações novas que desafiavam a Primeira Emenda, Black assumia seu absolutismo sobre assunto com a frase: “Não fazer nenhuma lei significa não fazer nenhuma lei.”
Antes e depois de Black, principalmente nos tempos de Guerra, a Suprema Corte deixou prosperar, pelo menos por algum tempo, leis infraconstitucionais que, claramente, contrariavam a Primeira Emenda, — como foi o caso de leis contra a sedição e a espionagem. Mas nunca, até hoje, ninguém ousou mexer na redação da Primeira Emenda, dando-se como única exceção à regra o “clear and present danger”ou o “perigo claro e presente” . O exemplo mais citado dessa situação em que não há proteção constitucional é quando alguém grita “fogo” em um teatro lotado provocando um estouro em que a multidão se pisoteia em busca das portas de emergência. Outro ministro da Suprema Corte americana, Louis Brandeis, clareou o conceito de “presente”, dizendo que o perigo deve ser “urgente e iminente”.
Dos oito agentes nazistas, seis foram julgados, condenados à morte e executados na cadeira elétrica. Dasch e Burger, que deduraram os companheiros e assumiram a culpa, ficaram presos e foram deportados para a Alemanha ao final da guerra.
O caso dos sabotadores ajuda a mostrar o grau de comprometimento da democracia americana com a liberdade de expressão. Panfletos são discursos. O discurso é livre. Armas e explosivos não são protegidos. Mas, e isso é importante, o discurso que provoca feridos ou mortos também não tem proteção constitucional quando o perigo que oferece é “urgente e iminente”.
A ofensiva do Supremo
A atual ofensiva do Supremo Tribunal Federal (STF) contra os blogueiros e ativistas bolsonaristas, assume que esse grupo definido pelo ministro Alexandre de Moraes como “Gabinete do Ódio” oferece perigo “urgente e iminente” de provocar feridos e mortes, não apenas de pessoas, mas de instituições. Essa interpretação do STF é errada à luz do princípio universal da liberdade de expressão?
Não é alentador que o STF tenha aberto o precedente de patrocinar um inquérito policial de uma causa da qual possa vir ser também o julgador no futuro. Mas, do ponto de vista da proteção constitucional à liberdade de expressão, claramente os investigados, com sua pregação de “invasões”, “fechamento” e “confrontos armados” entraram na zona de sombra do perigo “urgente e iminente”.
Eles comandam enorme poder de mobilização nas redes sociais. Diz o boletim diário da Bites, do jornalista Manoel Fernandes: “Os 13 sites bolsonaristas de maior audiência receberam em abril 38 milhões de visitas, entre eles o Jornal da Cidade Online (15,8 milhões de visitas) e o Terça Livre (3,1 milhões). No mês passado, a audiência do primeiro cresceu 41% e do Terça Livre dobrou.”
A Primeira Emenda santificou a liberdade de expressão no tempo dos panfletos e dos jornais impressos nos porões da clandestinidade por opositores do governo. O que a PF investiga no inquérito aberto pelo STF é uma operação complexa, cara, de alta penetração, atuação permanente pelas redes sociais e, é alvo da investigação, talvez tocada com alguma contribuição de verbas públicas. É um fenômeno novo. O ideal é que tivesse sido trazido à luz por iniciativa do Legislativo ou da própria Polícia Federal. A ação partiu da Corte Constitucional brasileira. Esse é mais um ingrediente inédito e perturbador.