Para a economista, o objeto principal da reforma administrativa é a eficiência operacional do Estado e a oferta de melhores serviços ao cidadão. A economia de recursos não é prioridade.
Apesar de quase 40% do PIB passar pelas mãos do Estado brasileiro, é quase impossível encontrar quem esteja satisfeito com os serviços públicos no Brasil. De acordo com uma pesquisa da OCDE, a satisfação do brasileiro com o sistema educacional caiu de 58, em 2007, para 48, em 2016, num índice que vai de 0 a 100. A nota da saúde caiu ainda mais, de 42 para 31 ao longo do mesmo período. Os gastos públicos, por outro lado, cresceram.
Cobrir o rombo das contas públicas deve ser apenas um estágio inicial na reforma do Estado brasileiro. Além de cortar gastos, é preciso garantir maior eficiência nas políticas públicas, para que cada real do orçamento gere benefício relevante à sociedade. Reformas que alterem também a capacidade de planejamento e operação do governo são urgentes.
Ao discursar após a aprovação da reforma da previdência na Câmara, Rodrigo Maia deixou clara a sua prioridade seguinte: a reforma administrativa. Na ocasião, Maia citou pesquisas recentes da economista Ana Carla Abrão, ex-secretária da Fazenda de Goiás e sócia da consultoria Oliver Wyman, em conjunto com o economista Arminio Fraga e o jurista Carlos Ari Sundfeld.
Virtù conversou com Ana Carla Abrão. Sua avaliação é de que as mudanças devem buscar melhores serviços, sem pensar somente em cortes de gastos. O projeto até aliviaria significativamente o orçamento, mas o objeto principal é a eficiência operacional do Estado.
As carreiras do setor público
Inicialmente, entrarão no alvo as leis que regem as carreiras do setor público. Um ponto sensível é a avaliação de desempenho dos servidores públicos. Há muitos anos, trabalhadores de empresas da iniciativa privada, em quase todos os níveis, têm seus bônus e rumos da carreira dependentes de avaliações de desempenho. Isso é a base do sistema meritocrático. Os servidores públicos, de maneira geral, mesmo nas repartições em que são regularmente avaliados pelas chefias, nunca tiveram que se preocupar seriamente com suas notas de desempenho.
A ideia agora é que as notas de desempenho tenham mais impacto nos ganhos e na velocidade com que os funcionários públicos avançam na carreira. Eles devem ser comparados com os colegas que exercem as mesmas funções e níveis, sob as mesmas condições de trabalho, de modo que desempenhos sofríveis possam ser avaliados com neutralidade e precisão — e, eventualmente, sejam até usados como base até para demissões.
A meritocracia é muito bem-vinda ao funcionalismo público, pois transfere para o servidor boa parte da responsabilidade sobre sua vida profissional. Mas ela precisa ser implantada com todo cuidado, tendo em mente o regime legal que regula o serviço público. Um trabalhador da iniciativa privada só não pode fazer aquilo que é proibido. Já o servidor público só pode fazer o que é permitido. Essa diferença não é sutil. Ela tem poder de engessar as iniciativas individuais positivas dos funcionários públicos. Não são raros os casos em que eles são punidos simplesmente por inovarem seus processos de trabalho em benefício do público. A obrigação de fazer apenas o que é expressamente permitido é incompatível com a meritocracia. Portanto, antes de apontarmos o dedo para o funcionário público julgado inerte, incapaz ou até preguiçoso é preciso lembrar que ele pode estar apenas tolhido pelo excesso e pormenorização extrema de regras que tornam sua função um mero cumprimento de processos – sem compromisso com o resultado.
Desde a reforma administrativa de 1998, já existe a previsão constitucional de demissão por insuficiência de desempenho no serviço público. Ela só costuma ser acionada em casos de flagrante descumprimento do dever ou dolo. Para que esse quadro mude para melhor, não basta, porém, implantar um regime de avaliação. O servidor precisa, antes, ter as condições jurídicas favoráveis a iniciativa individual criativa e ter as condições de trabalho compatíveis com o exercício eficiente da função. Satisfeitas essas condições, os próprios servidores têm muito a ganhar com um sistema de mérito.
Ana Carla acredita que muitas das mudanças podem vir com um Projeto de Lei Complementar (PLC) que afete toda a legislação que rege a carreira dos servidores federais. Neste PLC, a União pode vincular qualquer ajuda federal para estados e municípios à aprovação de projeto análogo na respectiva esfera federativa.
A aprovação por PLC tem uma a vantagem de exigir maioria simples nas votações no Congresso, com um turno em cada casa legislativa. Para ser aprovada, uma PEC exige 60% dos votos em dois turnos na Câmara, depois mais dois no Senado.
É preciso admitir que o atual sistema fracassou, tanto pelo custo quanto pela qualidade dos serviços públicos. Por isso, Ana Carla defende mudanças em larga escala na legislação. Uma das mais vitais, em sua visão, é pôr fim às diversas reservas de mercado existentes nos cargos do Estado.
Hoje, muitos cargos exigem especificações desnecessárias para que se ocupe alguma função no Estado. Igualmente comum é a vinculação do servidor ao seu cargo original, que dificulta transferências para outras áreas que precisem de funcionários.
Como resultado, o Estado não consegue alocar bem o seu capital humano. Sempre que precisa preencher um cargo, é obrigado a fazer novos concursos, ao invés de reciclar o trabalho de quem já está na folha do setor público. As atividades-meio, como as de assistentes administrativos, acabam inchadas por essa obrigação.
A economia de recursos não é a prioridade da reforma administrativa, mas isso não significa que o assunto seja desprezado pelos autores da proposta. Há dois mecanismos que podem ser fundamentais para o ajuste fiscal.
O primeiro, mais relevante para o longo prazo, seria um novo planejamento da escala de salários do setor público. Um dos desafios é impedir que o salário inicial das carreiras já esteja próximo ao teto. O último concurso para consultor do Senado, por exemplo, prevê salário inicial de R$ 33.461,68, com o teto de R$ 35.114,14. Essa distorção impede qualquer incentivo de melhoria de desempenho em troca de aumento significativo de ganhos do servidor. É um convite à estagnação. Chegou a hora de mudar o sistema de modo que os servidores possam exercer todo seu potencial profissional em benefício do público – e seja valorizado por seu desempenho.