O negócio ainda pode ter aberto o caminho para privatizações mais lucrativas, rápidas e menos controversas.
Nesta semana, o governo Bolsonaro comandou a primeira das grandes privatizações prometidas em campanha. Por R$ 8,56 bilhões, a Petrobras vendeu 30% da BR Distribuidora, sua mais conhecida subsidiária, cuja marca, estampada na camisa do Flamengo por muitos anos, tornou-se familiar no Brasil. Em oferta residual, de cerca de R$ 1 bilhão, a estatal do petróleo vendeu outra fatia, de 3% , da BR Distribuidora.
Imediatamente, surgiram nas redes sociais os tradicionais questionamentos sobre o preço de venda. Teria sido a BR vendida a “preço de banana”? A mesma pergunta acompanhou as grandes privatizações desde a venda da Vale há 22 anos. Finda a transação, surgem denúncias de que o patrimônio público foi dilapidado em benefício de alguns poucos espertalhões. Persistentes, por serem bandeiras dos defensores do estatismo na economia, tais denúncias raramente se sustentam quando submetidas à avaliação séria do valor de mercado das empresas.
O Ministério da Economia não patrocinou a iniciativa, pelo menos oficialmente, mas o modelo de privatização pela venda de ações no mercado aberto, foi por diversas vezes defendido por Paulo Guedes, antes de ser ministro, em colunas jornalísticas que assinou durante anos nas revistas Exame, Época e no jornal O O Globo.
Essa particularidade pode ser entendida como uma possibilidade real de que esse modelo seja adotado nas privatizações de subsidiárias de estatais de outros setores.
O novo modelo pulveriza o controle acionário da companhia criando mecanismos inéditos de governança corporativa com a implantação de “cláusulas de segurança” contra abusos por parte dos sócios mais fortes. No caso da BR Distribuidora, por exemplo, os representantes da Petrobras no conselho diretor não podem votar em questões com potencial conflito de interesses entre a petroleira estatal e a nova BR.
As vantagens desse modelo são evidentes. As empresas resultantes desse processo de privatização, mesmo tendo como sócios majoritários as estatais às quais eram ligadas, ganham agilidade e dinamismo típicas da iniciativa privada – ou seja, passam a funcionar liberadas das regras estatais para licitações e para a contratação e demissão de pessoal, sem a necessidade de concursos públicos para preenchimento de vagas.
Na Bolsa, um “preço de banana” se corrige rapidamente
Para entender por que a fatia de 30% BR foi vendida por R$ 8,56 bilhões, Virtù conversou com analistas do mercado financeiro especializados em “valuation”.
É importante ter em mente que a venda da fatia da BR foi feita por meio de oferta de ações em mercado aberto. Nesse ambiente, é difícil que se pague “preço de banana” por ativos que valem muito mais. É da natureza do mercado aberto procurar o que em outros tempos já se chamou de “preço justo”, mas hoje, mais adequadamente, se define como “preço de equilíbrio” – definido pelas pressões de oferta e procura.
Nos IPOs – sigla para Initial Public Offering – é bem mais comum que ocorra uma desconexão entre o preço de oferta e o valor de equilíbrio de uma determinada ação. São flutuações inerentes à estréia de novos papéis no pregão. No caso da BR, porém, já existiam ações da empresa no mercado, cujo histórico de preços era bastante conhecido por todos. Como resultado, havia uma referência mais real para a precificação do valor da companhia. Essa circunstância praticamente impossibilita que ativos valorizados sejam vendidos a “preço de banana”.
Em ofertas como a da BR, é comum que o preço escolhido fique pouco abaixo daquele praticado pelo mercado. Afinal, como será feita uma oferta muito grande de ações, é preciso dar um desconto para facilitar a compra de grandes lotes.
Analistas consultados pelo Virtù reclamaram de um baixo desconto na oferta da BR, justamente o oposto do alegado nas redes sociais. Segundo eles, o preço (R$ 24,50 por ação) era o mesmo já praticado no início do mês. Como se pode ver no gráfico abaixo, os papéis da BR (BRDT3) custaram cerca de R$ 24,50 entre maio e meados de julho. Antes de maio, as ações estavam mais baratas que na oferta da Petrobras.
Existem muitos preços de banana em toda economia de mercado. Alguns produtos acabam vendidos por muito, outros por pouco. Mas uma coisa é certa: se você quiser vender um ativo por um preço injusto, não procure a Bolsa de Valores, onde o valor dos papéis se atualiza em tempo real, enquanto milhares de agentes procuram obsessivamente por “preços de banana”.
Cuidado nas comparações
Outro questionamento frequente tem relação com o lucro da BR Distribuidora – aproximadamente R$ 3,2 bilhões de reais em 2018. Este valor foi comparado nas redes sociais com os cerca de R$ 9 bilhões arrecadados pela Petrobras na oferta de ações. Foi o caso das críticas de Rubens Valente, repórter da Folha de São Paulo em Brasília.
Hoje o governo Bolsonaro perdeu o controle da BR Distribuidora ao vender suas ações por R$ 9 bilhões. Em suma, privatizou. Agora sabem qual foi o lucro da BR só no ano passado? R$ 3,2 bilhões: https://t.co/RKLuTFvIE3
— Rubens Valente (@rubensvalente) 24 de julho de 2019
Em primeira análise é controversa a comparação entre 100% do lucro e uma oferta de 30% das ações da empresa. O valor de mercado de 100% da empresa, após a operação, ficou pouco abaixo dos R$ 30 bilhões.
Essa comparação entre 30% e 100% também deu a tônica em um comentário de Guillherme Boulos, ex-presidenciável. Boulos comparou a venda de 30% da BR com 100% da rede hoteleira Belmont, dona do Copacabana Palace e estabelecimentos de luxo.
A privatização da maior distribuidora de combustíveis do Brasil foi por U$2,5 bilhões. Em 2018 o Copacabana Palace/Belmond foi vendido por U$3,2 bilhões. O controle da BR Distribuidora custou menos que um grupo hoteleiro. O país está sendo entregue. E numa liquidação vergonhosa.
— Guilherme Boulos (@GuilhermeBoulos) 24 de julho de 2019
Os analistas ouvidos pela Virtu ressaltaram também que avaliações de mercado devem considerar o perfil da empresa, seus indicadores financeiros e operacionais, nicho de mercado, posicionamento das marcas, tendências e outros fatores. Por isso, a comparação mais cabível seria com outros atores do setor de óleo e gás.
A razão entre a geração de caixa da companhia e seu valor de mercado, ao redor de 8, está em linha com as principais concorrentes. Acima dos 5,5 registrados pela Petrobras, antiga controladora.
E, mesmo assim, é essencial que a avaliação lance um olhar mais profundo sobre a BR. Afinal, os lucros atuais da empresa atrapalham qualquer análise, se tomados pelo valor de face.
O lucro da BR distribuidora foi inflado por receitas não-recorrentes
Os R$ 3,2 bilhões citados por Rubens Valente trazem ainda um problema adicional. O lucro líquido da BR Distribuidora em 2018 foi inflado pelo pagamento de uma dívida da Eletrobras.
No meio de uma das confusões causadas pela tentativa de controle de preços no governo Dilma, a BR tomou um expressivo calote da Eletrobras na na venda de combustíveis para a região Norte. A dívida total, próxima de R$ 4,6 bilhões, está sendo paga em 36 parcelas iniciadas em abril de 2018. Só em 2018, cerca de R$ 1,6 bilhão foi pago, inflando consideravelmente o lucro naquele ano.
Por se tratarem de receitas não-recorrentes, o lucro da BR deve cair consideravelmente já na próxima década, pois o pagamento da Eletrobras acaba em curto prazo. Como consequência, o lucro de R$ 3,2 bilhões não pode ser tomado como base no valuation da BR.
Este caso exemplifica como nascem – e nos prejudicam – os ruídos de redes sociais. Após a comparação entre os números que aparecem em manchetes, muitos tentam avaliar a operação, como se tal análise fosse extremamente simples. Mas não é.
A avaliação de mercado de uma empresa pode tirar o sono de gente muito experiente no mercado, ainda que ele já tenha lido o balanço da empresa, suas notas explicativas e relatórios sobre a operação. Não há fórmulas exatas, nem é possível chegar a conclusões olhando apenas o lucro da companhia.
A saída para quem ainda abração a tese de que as ações da BR Distribuidora foram vendidas a preço de banana é, simplesmente, comprar ações da BR Distribuidora na Bolsa. Neste caso, os críticos da operação teriam o amparo teórico do ensaísta e analista de riscos Nassim Taleb, famoso autor do livro “A Lógica do Cisne Negro” (Editora Best Seller, 2008). Os críticos da privatização da BR Distribuidora podem, nas consagradas expressões de investidores, “colocar seu dinheiro onde sua boca está” e, assim, “apostar própria pele” com base em suas convicções. Afinal, é realmente difícil acreditar em quem mostra convicção da boca pra fora, mas dúvida dentro do bolso.