O COVID19 catalisou a percepção da vulnerabilidade de nossas vidas sociais e sistêmicas, e acelerou a contaminação da comunicação, há décadas povoada por notícias falsas, dados falsos, polarização, “bots” e algoritmos, perfis falsos, discursos de ódio, adoração de celebridades e a paralisia da capacidade de análise. O antídoto: o reestabelecimento da confiança.
Esta é uma “infodemia”, não apenas uma pandemia. Uma infodemia é uma infecção do idioma. Mais disseminada e contagiosa, instalou-se muito antes da expansão do COVID19 e começa agora a mostrar sua real extensão. Acelerada pelo COVID19, a infodemia afeta todos os sistemas de nossa estrutura de informações, abrindo portas para uma série de outros perigos.
Um vírus é código e código é linguagem. Ao dar nomes a tudo, os humanos usaram a linguagem para definir a si mesmos e definir individualidades. Elas são tudo o que nos rodeia. Somente individualidades podem ter relacionamentos e todos os relacionamentos geram dados. O COVID19 rapidamente se tornou um vírus social, um vírus móvel, o vírus dos dados. Para nosso corpo de informações, a comunicação instantânea pode ser uma contaminação instantânea. Décadas de exposição à infodemia enfraqueceram nossa capacidade de comunicação à medida que aumentávamos nossa conectividade. O resultado é um ecossistema de informações desproporcional e desequilibrado, em que o arsenal instalado de tecnologia e a infraestrutura básica não foram projetados para lidar com o que ainda está por vir. Não estamos falando de hospitais, mas de nossa capacidade de analisar, entender o ambiente a nossa volta e responder melhor a ele.
A palavra “V”
A linguagem já estava doente quando o COVID19 acelerou sua invasão sistêmica. Antes de invadir nossos corpos, primeiro ele saltou entre espécies de animais silvestres dentro de um mercado de bichos vivos. Para se tornar global usou toda a conectividade disponível em terra, ar e mar. Depois disso, o COVID19 deu outro salto. Desta vez, de nossos corpos físicos saltou para nossa linguagem, invadindo uma única palavra no vocabulário: vulnerabilidade.
O vírus tocou os mais profundos dos nossos medos. O medo da morte, o da mudança, o medo de aprender e o medo do outro. Reconectando nossas vidas à fragilidade de viver, a COVID19 plugou a biovulnerabilidade ao cotidiano de nossas vidas e, assim, revelou vulnerabilidades ocultas em todas as camadas da sociedade. Revelou a vulnerabilidade biológica, a vulnerabilidade de relacionamento, a vulnerabilidade financeira e patrimonial, a vulnerabilidade de alimentos e de logística e, claro, a vulnerabilidade dos dados.
Práticas sociais
O antídoto para a vulnerabilidade é outra palavra especial: confiança. Décadas de infodemia minaram a confiança: notícias falsas, dados falsos, polarização, “bots” e algoritmos, perfis falsos, discursos de ódio, adoração de celebridades e, finalmente, a paralisia da capacidade de análise. Ampliamos o uso e a velocidade da linguagem, mas não nossa habilidade de aperfeiçoá-la. A velocidade, o volume e a variedade de dados que precisamos processar apenas para responder um ao outro são gigantescos hoje em dia.
A prática social é a prática de lidar com o “outro” aquele que, em princípio, é uma ameaça à nossa existência. Lidar com o outro nos deixa temerosos de revelarmo-nos a nós mesmos, longe do “eu” imaginado que nos acostumamos a chamar de eu. A regra ética básica da vida em sociedade é superar o medo do “outro” em nome da construção da humanidade. Essa é a ideia central por trás da palavra “confiança”.
Nesse contexto, a conversa é uma prática ética de agir em relação à existência do outro. Começa com o reconhecimento do outro como ferramenta de humanização. A conversa sempre foi o “campo de guerra” dessa luta entre o medo e a socialização.
Para reduzir a incerteza e criar confiança, os humanos valem-se de conversas para transformar informações em dados e, no sentido inverso, dados em informações. Decisões informadas precisam de informações confiáveis, dados precisos e processos confiáveis, tanto quanto de reconhecer a origem e as fontes dos dados.
A confiança é a ponte entre potencial e ação, espinha dorsal sustentando intenções, atos e responsabilidades. Ela está estrategicamente posicionada no centro do protocolo das comunicações humanas: conversas para unir, conversas para chegar a acordos e conversas para concluir transações.
As conversas são ciclos constantes de realimentação. O uso da linguagem requer ciclos de realimentação de interações e análises. Os ciclos de realimentação trazem novos dados e novas informações ao processo, possibilitando a análise e refinando a linguagem.
Ciclos de realimentação interrompidos
Tudo o que fazemos como indivíduo, toda palavra que pronunciamos, toda escolha que fazemos, afeta a coletividade. Evidente? Agradeça ao COVID19.
Uma única pessoa afeta o planeta e mede o impacto disso usando seis sentidos – toque, visão, audição, olfato, paladar e a sensação de espaço. A autopercepção é a maneira como o cérebro define onde nosso corpo se encontra no espaço.
Como coletividade, a humanidade afeta o mundo através das finanças, das telecomunicações, da logística, da saúde, da agricultura e dos serviços. Essas indústrias são as proprietárias dos sensores e dos recursos de medição de nosso impacto coletivo. Elas monopolizam os dados e não temos como nos realimentar deles.
Também não temos ainda um cérebro coletivo e distribuído para nos ajudar a entender onde estamos no espaço coletivo. Sem uma percepção do corpo coletivo, não podemos sentir as infecções começando, nem ver a vida marinha sendo aniquilada pelo plástico que entope oceanos. Tampouco percebemos que os alimentos são envenenados por produtos químicos. As pessoas estão cegas por falta de consciência.
O ciclo de realimentação de dados que precisamos não é atingível no atual estado da arte da tecnologia. A revolução industrial e as metáforas da Segunda Guerra Mundial não podem mais nos ajudar a avançar. A metáfora da guerra é a que nos promete o cenário reconfortante de vitória quando lidamos com algo como o COVID19. Mas ela também nos prende ao passado, a que desejamos voltar e, o mais rápido possível, recriar as coisas como elas costumavam ser. Quando o que precisamos é nos afastar do passado para imaginar e criar um futuro totalmente diferente. Agora mesmo muitas vozes estão defendendo novas ideias para a criação desse futuro — Kate Raworth, Luciano Floridi, Yuval Harari.
Mercados de animais vivos
Ocorre, porém que um vírus não é o inimigo que conhecemos na guerra convencional; não se encaixa na narrativa conhecida. Um vírus não tem vontade nem impulso de vingança. Um vírus é um código que se replica da mesma maneira que uma ideia se replica na estrutura da informação. Graças ao COVID19, estamos começando a aprender a melhor contar histórias usando os dados. A alfabetização de dados é vital para o futuro próximo.
Não faz muito tempo, a China padeceu da “Grande Fome”. Mais de 15 milhões morreram de inanição no início dos anos 1960. Os mercados de animais silvestres vivos não são pura extravagância cultural. Todos nós temos cicatrizes profundas para curar se quisermos evitar a próxima pandemia. A linguagem é nosso bem mais precioso. É a ferramenta que usamos para contar nossas histórias. Que histórias estamos contando aos nossos filhos durante a quarentena em casa?
André Vellozo é empresário de fronteira e fundador da Drumwave. Ele mora em Palo Alto, Califórnia, teve COVID19 há algumas semanas, se recuperou e está se sentindo melhor agora.