O economista-chefe do UBS Brasil escreve sobre o ciclo econômico global dos últimos anos
O medo de uma recessão global está atormentado os mercados. Entender as razões por trás disso, e as possíveis reações de política econômica seria hoje o maior desafio para os analistas econômicos. O ponto inicial da análise deve ser tipificar o ciclo global que tivemos nesses últimos anos.
O período dos últimos dez anos foi de fato bastante atípico em três dimensões. Primeiro, ele foi bastante longo: nenhuma economia central tem sofrido com um processo recessivo desde a “Grande Crise Financeira” (GCF) de 2008. Segundo, apesar de longo, o ciclo de recuperação foi bastante “raso”: com exceção dos EUA, várias economias demoraram muitos anos para chegar a patamares de PIB pré-GCF, e muitas economias, inclusive a americana, até hoje não conseguiram retomar os níveis de crescimento sugeridos por tendências de longo prazo que vêm desde o período pós-Segunda Guerra, sugerindo aquilo que hoje é chamado de “estagnação secular”. E, finalmente, nos últimos dez anos, o valor dos ativos financeiros tem se descolado e subido muito mais do que a economia real e os níveis de investimentos.
O ciclo global dos últimos anos
Uma maneira de explicar esses três fatos vem da natureza da GCF. Em meu novo livro, “Pragmatismo sob coação: Petismo e economia em um mundo de crises” publicado pela Alta Books, eu mostro como o modelo de crescimento econômico adotado pela China, privilegiando a repressão do consumo para maximizar níveis de poupança e investimentos, gerou a necessidade de buscar a demanda externa – isto é, as exportações, que foram usadas para dar vazamento à produção local. Isso implicou grande acúmulo de reservas internacionais – fruto de grandes superávits em conta corrente -, o que representou uma inédita transferência de poupança da China – país pobre – para os EUA – país rico, revertendo o padrão usual.
Mas essa relação EUA-China escondia uma contradição: a demanda final por crédito nos EUA se concentrava no setor de bens não transacionáveis, como o setor imobiliário. Assim, os passivos gerados eram do setor privado, como hipotecas e outros créditos securitizados ligados ao consumo.
Mas, do lado chinês, a acumulação se deu via reservas do PBOC, o banco central chinês, e este, como a maioria dos bancos centrais, não gosta de tomar risco de crédito privado – o acúmulo de reserva se dá pela compra de títulos soberanos, como os Treasuries americanos.
Assim se criou uma assimetria: os ativos vendidos eram do setor privado/consumidores, mas os ativos comprados pelo PBOC eram soberanos. Para onde foi o risco de crédito privado “indesejado” e residual? Ele foi acumulado dentro do próprio mercado financeiro por um processo de cisão de riscos, usando engenharia financeira. E foi esse processo de acumulação que levou ao que vimos entre 2002-2008: o “inchaço” do setor financeiro globalmente; o crescimento exponencial do setor financeiro não bancário, ou shadow banking; e uma bolha de crédito, imobiliária e de commodities a nível global (inclusive no Brasil), e sua posterior implosão pela crescente fragilidade financeira que nos levou a GCF.
A principal razão pelo qual a GCF levou ao que posteriormente foi chamado de “Grandes Recessões” em vários países (mas não o Brasil; a nossa Grande Recessão foi postergada para 2014) foi a desarticulação da troca de poupança-investimentos-crédito que tipificou os anos 2002-2007. Essa “troca” de déficits/superávits que ocorreu antes da crise entre países como a China e os EUA permitiu que países superavitários e deficitários tivessem níveis maiores de demanda agregada.
A desarticulação desse circuito forçou cada economia a procurar uma resposta “autárquica” para restabelecer o fluxo de crédito e demanda perdido.
Na maioria dos casos – EUA, Europa e Japão -, isso se deu por políticas monetárias heterodoxas, ou diferentes versões de quantitative easing, ou “QE”, que podemos traduzir como “expansão quantitativa” – a compra de ativos pelos bancos centrais.
Na China, diferentemente, sua reação foi expandir o crédito via seus bancos estatais voltados a fortes investimentos em infraestrutura. No caso brasileiro, nosso QE veio por uma política de expansão do crédito a partir dos bancos públicos, se assemelhando a resposta chinesa, mas, infelizmente, voltado ao consumo, e não ao investimento em infraestrutura que tanto precisamos, uma grande oportunidade perdida.
Mas a verdade é que essas respostas “locais” não conseguiram restabelecer o mesmo fluxo de crédito global pré-crise, nem facilitar o mesmo nível de comércio mundial e troca benéfica de superávits e déficits nas contas correntes. O sistema pré-crise acabou sendo insustentável, mas funcionou muito bem exatamente por articular diferentes zonas econômicas e seus fluxos financeiros e comerciais.
E houve vários efeitos colaterais perversos do QE. Seu efeito principal foi elevar os preços de ativos financeiros. Assim, do ponto de vista da distribuição de renda, quem ganhou mais foram os mais ricos, exatamente quem sofreu menos com a crise. Pouco do impacto do QE chegou à economia real. Esse efeito assimétrico na renda certamente contribuiu para a eclosão de insatisfação popular e o populismo político que hoje vemos em vários países.
Assim, é possível perceber como chegamos aos dias de hoje. Tivemos uma longa recuperação da economia global que não permitiu a normalização da politica monetária. Somente os EUA conseguiram fazer alguma coisa neste sentido. A falta de espaço monetário, aliado à crescente incerteza política, leva os investidores a procurar não rentabilizar seu capital, mas a procurar um porto seguro contra perdas de capital. Desta forma, assistimos ao antes inimaginável fenômeno de taxas de juros negativos, que se espalha ao redor do mundo como uma infecção.
Normalmente, em momentos de aversão ao risco, investidores procuram um porto seguro em ativos de curto prazo, já pensando que em algum momento, em breve, a crise deve passar. Por que então estamos vendo taxas negativas em ativos longos, de dez a trinta anos? Parte da razão tem a ver com a crescente percepção que a “guerra comercial” EUA-China não se limita à uma questão comercial que pode ser resolvida por um acordo. Ela seria apenas uma vertente de uma concorrência geopolítica que deve durar por muitos anos e com resultados bastante imprevisíveis.
Qual a saída? Por sorte, há ainda algum dinamismo da economia global (especialmente a americana), assim há tempo para reagir. A resposta óbvia seria o uso agressivo da política fiscal por países enfrentando juros negativos onde os investidores estão literalmente pagando para entregar seus recursos. Como no caso chinês em 2009-2010, muitos países podem aproveitar esse “dinheiro de graça” e investir em projetos de infraestrutura para aumentar seu potencial de crescimento e escapar da “estagnação secular” e, olhando para o futuro, energias renováveis para diminuir os crescentes impactos do aquecimento global. Há oportunidades em todas as crises, basta vontade política.
*Tony Volpon é economista-chefe do UBS Brasil, foi diretor da área internacional do Banco Central, e acabou de publicar “Pragmatismo sob coação: Petismo e economia em um mundo de crises” pela Alta Books.