Artigo de Pedro Vormittag | Bacharel em Direito pela USP e mestrado em Gestão Internacional pela Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV EAESP).
Em que pese a derrota de Donald Trump na corrida pela Casa Branca, o partido Republicano tem poucos motivos para reclamar das eleições de 2020. Pelo contrário, por trás das manchetes e dos tweets, vitórias decisivas em eleições estaduais e locais podem ter assegurado aos conservadores a hegemonia eleitoral pela próxima década.
Enquanto as eleições presidenciais tomavam conta da opinião pública, eleições legislativas pelos 50 estados consolidaram o domínio republicano no Senado e diminuíram significativamente a maioria democrata na Câmara de Representantes, um choque para lideranças democratas que apostavam em uma “Onda azul” a varrer o trumpismo dos Estados Unidos.
No longo prazo, porém, a mais importante vitória republicana nas eleições “down-ballot” tenha sido a conquista das legislaturas estaduais, órgãos responsáveis pelo redesenho dos distritos eleitorais na maioria dos 50 estados norte-americanos.
No sistema de voto distrital que vigora nas eleições para a Câmara dos Representantes, Deputados Federais disputam eleições em distritos — divisões territoriais dos estados com base em critérios populacionais. Periodicamente, os contornos geográficos dos distritos eleitorais são redesenhados com base nos dados demográficos de um censo nacional produzido a cada 10 anos. No processo de redesenho, as legislaturas estaduais têm competência para tomar decisões sobre a forma de cada nova circunscrição eleitoral.
Em outras palavras, com a vitória “down-ballot” sobre Câmaras e Senados estaduais, o partido republicano conquistou a prerrogativa de moldar a geografia eleitoral em estados-chave como o Texas, Iowa e Carolina do Norte. Com o controle da régua e do compasso que desenha as vagas em disputa na Câmara dos Representantes em Washington e em outros espaços legislativos, nada impedirá o uso e abuso pelos republicanos do processo de gerrymandering, arte e ciência de manipulação dos mapas eleitorais que agrupa eleitores mais pela conveniência dos donos do poder do que pela objetividade da distribuição demográfica do território.
“Normalmente, os eleitores escolhem os políticos. No redesenho dos distritos, os políticos é que escolhem os eleitores.” A frase é de Thomas Hofeller, principal estrategista do gerrymandering na política americana. A operação republicana não é nova e remonta a décadas de manobras conservadoras para distorcer a representatividade do voto nos Estados Unidos. Em larga medida, foi assim que o partido republicano conquistou um poderio incontestável na política americana na década de 2010. Tendo varrido os democratas dos parlamentos estaduais na eleição que definiu os representates responsáveis pelo redesenho a partir de 2011, republicanos moldaram o mapa político dos Estados Unidos ao sabor das suas conveniências eleitorais.
Ao contrário de 2010, quando o investimento republicano de 30 milhões nas campanhas locais supreendeu com a conquista de mais de 20 legislaturas estaduais, em 2020 os democratas estavam equipados para uma disputa competitiva. Lideranças democratas reuniram cerca de 50 milhões de dólares em doações, planejando ganhar o controle das casas estaduais em estados como Pensilvânia, Michigan, Iowa, Carolina do Norte e Texas. O investimento democrata, porém, não deu o retorno esperado: a derrota veio até mesmo em estados onde Biden venceu, como Michigan e Pensilvânia, além de a maioria na Assembleia Estadual de New Hampshire ter sido perdida para o partido republicano.
As legislaturas estaduais são também o locus de decisões cruciais para a implementação de políticas públicas caras à base democrata. Deputados e Senadores locais decidem sobre o alcance da cobertura dos serviços de saúde pública nos estados, além de regulamentarem a implementação de políticas contra a violência policial. Em estados como Iowa e Texas, as legislaturas estaduais também têm competência para legislar sobre aborto.
As razões para o fracasso democrata são motivo de debate entre especialistas. Analistas já há muito notam a falta de atenção do partido às disputas eleitorais não-presidenciais. Em “O liberal de ontem e o do amanhã”, o cientista político Mark Lilla chama a atenção para a negligência com que progressistas deixaram de organizar mensagens convincentes nas disputas locais em estados de hegemonia conservadora, negligenciando parcelas da população dependentes de políticas progressistas nessas regiões. No coração da crítica, o diagnóstico de que a supremacia republicana nos níveis locais e regionais de governo dá a conservadores o controle do processo de implementação de políticas públicas aprovadas em Washington. Em muitos casos, denuncia Lilla, o controle republicano da regulamentação local chega ao limite de desnaturar, na ponta, políticas progressistas históricas aprovadas no nível nacional, como as relacionadas ao aborto e aos direitos de voto para negros.
Diante da incapacidade eleitoral local e regional, nos últimos anos o campo progressista vinha apostando suas fichas nas Cortes estaduais para a fiscalização de políticas públicas, mais do que nos parlamentos. Sob a presidência de Donald Trump, porém, uma escalada de nomeações conservadoras para o judiciário federal e para a Suprema Corte impôs um obstáculo crescente à tática paliativa dos liberals americanos. Em matéria de direito eleitoral, por exemplo, a Suprema Corte tem consolidado entendimento que reafirma a supremacia do legislativo estadual sobre o judiciário estadual.
Na noite da eleição, especialistas na televisão americana descreviam uma “miragem vermelha” em que a maior concentração de votos republicanos nas cédulas presenciais, contadas antes das enviadas por correio, dariam a impressão inicial de que Trump triunfaria na disputa de 2020 — com Biden virando o jogo apenas à medida em que todas as cédulas eram contabilizadas. É a vitória democrata para a Casa Branca, porém, que se torna verdadeira “miragem azul”, na medida em que transmitir a progressistas a infundada ideia de que a sociedade americana enxerga no partido democrata soluções melhores do que as conservadoras para seus problemas.
Superada a euforia da vitória, ficará evidente que a candidatura de Biden e Harris só não seguiu o mesmo destino de todas as outras candidaturas democratas porque o habilidoso ex-Vice Presidente e agora Presidente eleito foi capaz de transformar a disputa presidencial em um plebiscito moral sobre o caráter de Donald Trump, mais do que numa escolha entre democratas e republicanos. Aconselhado por seus estrategistas, na reta final Trump até se deu conta dos termos em que poderia vencer a disputa e manobrou para debater propostas concretas, atacando as ideias da chapa democrata para mudança climática e segurança pública — e chegando a convencer o eleitorado de que seu nome era o melhor para recuperar a economia norte-americana da crise do coronavírus. Era tarde demais: tendo sido eleito após subverter o debate nacional para longe da moderação, a figura política de Donald Trump atraia paixão e ódio demais para convencer eleitores a partir de argumentos racionais.
Na ponta e “down-ballot”, as urnas explicam a complexidade política de uma sociedade democrática. Em que pese a inegável hegemonia republicana, o fracasso democrata nas disputas locais não fornece evidências de que causas progressistas amargam a rejeição absoluta do eleitorado norte-americano. Em estados tradicionalmente republicanos como Montana, Dakota do Sul e Arizona, os eleitores deram vitória a Trump ao mesmo tempo em que aprovavam em plebiscito a legalização da maconha para consumo pessoal. Na Flórida, uma política de aumento do salário mínimo foi aprovada em plebiscito enquanto a maioria do eleitorado também entregava seus 29 delegados para Trump. Meses antes, nos estados do Missouri e de Oklahoma, que não elegem democratas para a Presidência desde 1996 e 1964, respectivamente, os eleitores aprovaram a expansão da cobertura do serviço de saúde pública Medicaid para camadas vulneráveis da população.
As evidências indicam que propostas progressistas podem até gozar da simpatia do eleitorado, mas falta ao partido democrata a tecnologia política para transformar simpatia em votos e, por consequência, em capacidade institucional de implementação dessas políticas de maneira permanente pelas burocracias locais e estaduais. O poder de agenda republicano nos espaços de poder não-presidenciais é um tema antigo, reafirmado pelo desfecho da eleição de 2020. A mensagem, passada a euforia da vitória de Biden e Harris, é a de que os democratas precisam aprender de uma vez por todas a vencer eleições com base na sua plataforma, mais do que na rejeição à do outro, sob pena de entregarem a agenda política dos Estados Unidos ao conservadorismo. Afinal, para as próximas disputas, o partido de Joe Biden não mais poderá contar com a rejeição de Trump para formar uma maioria na sociedade norte-americana.