Sem aprovar reformas de fundo nem fazer grandes privatizações, governo recorre ao expediente de burlar as restrições fiscais para aumentar as despesas públicas e criar o Auxílio Brasil
A decisão do governo de elevar o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) para bancar o pagamento do Auxílio Brasil, o programa que deverá ser o sucessor do Bolsa Família, é uma típica decisão fácil, mas autoritária e equivocada. Não resolve em nada as fragilidades estruturais. Se tivesse aprovado uma agenda um pouco mais ambiciosa de reformas e privatizações, Jair Bolsonaro teria recursos de sobra para aumentar os investimentos sociais sem ter que recorrer ao aumento da carga tributária. O presidente, no entanto, permanece mais ocupado em entreter a sua claque do que em trabalhar para o futuro do País.
De Bolsonaro pouco se espera. É um populista em busca da reeleição a qualquer preço. O difícil é quando o ministro da Economia, Paulo Guedes, “opera como um cheerleader” do presidente, como definiu de maneira mordaz o economista Affonso Celso Pastore, em sua entrevista recente ao UOL. “Ele no fundo é um propagandista do governo Bolsonaro”, disse Pastore. “Está sendo uma peça no tabuleiro político do presidente. Ele não é uma peça que está encaixada dentro do tabuleiro no qual se deve jogar um jogo e produzir reformas que aumentem a eficiência da economia.”
É plenamente justificável a decisão de ampliar o alcance do Bolsa Família. Há 14,5 milhões de famílias na miséria. A falta de oportunidades de trabalho e a inflação aprofundaram ainda mais as dificuldades dos mais pobres. O que não se justifica é recorrer a atalhos simplistas para financiar o novo programa, sendo que há inúmeras maneiras de fazer isso de maneira mais produtiva. O aumento do IOF, além do mais, vai encarecer o crédito para as pessoas mais endividadas — e elas, com certeza, não estão entre as mais ricas do País.
O decreto assinado pelo presidente Bolsonaro elevou a alíquota do IOF para pessoas jurídicas da alíquota anual de 1,50% para 2,04%, e para pessoas físicas de 3% para 4,08%. Com isso, o governo espera arrecadar R$ 2 bilhões até o fim do ano.
Desde o ano passado, foram apresentadas diversas propostas de reforma dos programas sociais. Muitas delas tiveram o cuidado de propor alternativas que fossem viáveis do ponto de vista fiscal, respeitando os limites da lei do teto de gastos. A ideia central era reorganizar os benefícios existentes, encerrar aqueles pouco efetivos e ampliar tanto o valor a ser pago às famílias vulneráveis como aumentar o número de atendidos pela rede de proteção social.
O governo, entretanto, não avançou um milímetro que seja no sentido do bom senso.
Bolsonaro afirmou que não tiraria dinheiro dos pobres para entrar aos miseráveis. Esperava-se que sua equipe apresentasse um plano coerente. Nada até agora. Não se sabe ao certo qual será o seu escopo do Auxílio Brasil, os valores a serem pagos nem as fontes de recursos.
O Bolsa Família chega hoje a 14,6 milhões de famílias, e os benefícios médios são de R$ 189. Com o Auxilio Brasil, o plano é atingir 17 milhões de famílias, com um pagamento médio de R$ 300. Atualmente, o orçamento anual com o Bolsa Família é de R$ 35 bilhões. Com o Auxílio Brasil, o total a ser gasto no próximo ano deverá superar R$ 60 bilhões. A receita adicional com o IOF vai cobrir apenas uma pequena parte das despesas previstas. E de onde sairá o restante dos recursos? Guedes não abandonou de vez a sua anacrônica ideia de ressuscitar a CPMF.
Existe, na verdade, um mar de indefinições. O problema inicial para o Orçamento de 2022 será encontrar uma solução para os R$ 89,1 bilhões previstos em pagamentos de precatórios. Ao que parece, vão buscar uma maneira de dar uma pedalada, jogando parte dessa despesa para os próximos anos. Mas, para que não haja crime de responsabilidade, o calote terá que ter algum amparo legal.
Em Brasília, o que não falta é criatividade. Já surgiram inúmeras propostas para driblar as restrições determinadas pelo teto de gastos. Mas a avacalhação das regras vai arruinar a principal âncora fiscal do País. Como alertou o economista Marcos Mendes, se isso ocorrer, será uma pá de cal sobre a última regra efetiva de controle dos gastos públicos. “Já desmoralizamos a Lei de Responsabilidade Fiscal, a regra de ouro e as metas de resultado primário. Agora é a vez de enterrar o teto”, disse Mendes, em artigo na Folha. E qual será a consequência? “Todos pagaremos a conta, com mais juros, mais inflação, menos crescimento e pior qualidade das políticas públicas”, resume Mendes.
As alternativas seriam mais promissoras caso as reformas tivessem saído do papel. Um estudo do Centro de Liderança Pública indica que apenas a possibilidade de redução em até 25% dos salários dos servidores, caso fosse aprovada com a reforma administrativa, poderia trazer uma economia de R$ 33 bilhões aos cofres públicos ao longo da próxima década. Outro exemplo: a aprovação do projeto que dá fim aos supersalários do funcionalismo poderá representar uma economia superior a R$ 3 bilhões ao ano para os cofres federais. O texto passou na Câmara e aguarda votação no Senado.
Uma reforma administrativa ampla teria um impacto muito maior, obviamente. As estimativas do valor a ser poupado variam de acordo com os parâmetros utilizados, mas um estudo do Ipea indicou que a economia poderia superar R$ 800 bilhões ao longo dos próximos dez anos.
Governo e Congresso, contudo, atuam para esvaziar a reforma administrativa. O texto que está prestes a ser votado na Câmara não toca nos privilégios dos juízes, promotores e outros servidores que estão na elite do funcionalismo. Eles continuariam gozando de férias de 60 dias e de outros mimos. A reforma valeria apenas para os novos servidores do Executivo. Os outros poderes ficariam de fora. Além do mais, o texto inclui jabutis, como a possibilidade de equiparar os guardas municipais à categoria de policiais — obtendo, assim, certos privilégios — e a concessão de benefícios a agentes de segurança pública. Os policiais poderão recuperar o direito à aposentadoria integral, revertendo assim um dos pontos da reforma previdenciária. Dessa maneira, a reforma administrativa corre o enorme risco de ser na verdade uma contrarreforma.
Enquanto os retrocessos institucionais e os riscos fiscais se multiplicam, Paulo Guedes continua vendendo ilusões. Ontem, em um evento com empresários, afirmou que o plano para os próximos dez anos é vender as grandes estatais, como o Banco do Brasil e a Petrobras. Quem viver verá.