Com apoio do Centrão, governo trama furar limite de gastos e aumentar valor e alcance do benefício social. Decisão aprofunda desequilíbrio fiscal e terá impacto negativo na economia. Resta saber se Congresso, STF e o TCU vão tolerar essa enorme pedalada
Sai Bolsa Família, entra Auxílio Brasil. Jair Bolsonaro quer um programa social para chamar de seu, e mais generoso do que o anterior. Não há dúvidas de que havia chegado a hora de o principal programa assistencial passar por uma reforma, mas não na base do improviso e arruinado com as regras básicas das finanças públicas. O Auxílio Brasil nasce com o objetivo escancarado de auferir um trunfo político para o presidente e para a sua base de apoio no Congresso, tendo como alvo uma parcela da população que tem sido duramente castigada pela crise econômica. O governo tenta, com esse golpe, reverter a sua má avaliação entre esses eleitores. O Auxílio Brasil será o Auxílio Bolsonaro.
O valor do novo benefício deve ser de R$ 400, bem acima dos atuais R$ 189 pagos, em média, no Bolsa Família. Além do reajuste, haverá um maior número de pessoas atendidas. Deverá ser eliminada a fila de 3 milhões de pessoas que se enquadram nas regras mas ainda não recebiam o auxílio por causa da falta de recursos. O total de beneficiados saltará para 17 milhões de famílias.
É uma unanimidade que, diante do aumento da pobreza, a ampliação da proteção social seja uma medida urgente. Deveria, aliás, ter sido feita há mais tempo. O problema está na forma como a mudança no plano está sendo feita.
O atual orçamento anual do programa é de R$ 34,7 bilhões. Para a ampliação do escopo, serão necessários outros R$ 50 bilhões. Problema: não existe espaço no Orçamento de 2022 para isso, ao menos não sem furar o teto de gastos. E, pelo que tudo indica, será isso que irá acontecer. Dos R$ 50 bilhões, R$ 30 bilhões serão convenientemente acomodados acima do teto.
A equipe econômica defendia que o novo programa tivesse um valor de R$ 300 e também que se encontrasse uma maneira de bancá-lo sem driblar o limite fiscal. Paulo Guedes perdeu mais uma e já não se sabe se irá longe na cadeira de ministro da Economia. Integrantes de seu time deverão pedir as contas nos próximos dias.
“O nível de criatividade sobe exponencialmente a cada notícia sobre como financiar o auxílio social”, comentou o economista Felipe Salto, diretor-executivo do Instituto Fiscal Independente (IFI). “A última é a intenção de pagar R$ 100 ‘por fora’ do teto e R$ 300 por dentro, com número de beneficiários incerto, inclusive. Escrevam: é o fim do teto de gastos.”
O nível de criatividade sobe exponencialmente a cada notícia sobre como financiar o auxílio social. A última é a intenção de pagar R$ 100 "por fora" do teto e R$ 300 por dentro, com número de beneficiários incerto, inclusive. Escrevam: é o fim do teto de gastos.
— Felipe Salto (@FelipeSalto) October 19, 2021
A perspectiva do triste fim do teto de gastos virou motivo de ironia nas redes sociais. Humor à parte, as consequências para a economia não serão triviais. A notícia repercutiu negativamente no mercado financeiro. O dólar subiu para R$ 5,60, a Bolsa de São Paulo caiu 3% e os juros futuros fecharam o dia em alta. São indicadores de que a o aumentou o risco de fazer negócios e aplicar recursos no Brasil, o que se traduz em um cenário mais adverso para as empresas e uma retração nos investimentos.
✝️ Teto dos gastos (2016-2021)
— Faria Lima Elevator (@FariaLimaElevat) October 19, 2021
Aprovada em 2016, a lei do teto de gastos estabelece que os gastos do governo não podem crescer de um ano para o outro acima da inflação. Há exceções, como os gastos com saúde e educação. Foi concebido para conter o aprofundamento do déficit público e diminuir o endividamento do governo. No início, funcionou perfeitamente. A maior previsibilidade fiscal e o controle nos gastos do setor público contribuíram para reduzir os juros.
Sem o teto, haverá ainda mais pressão inflacionária, por causa da alta no dólar, o que exigirá provavelmente doses adicionais de altas na taxa básica de juros. O resultado será uma queda no ritmo de crescimento da economia. Os mais pobres, a despeito do aumento no valor do benefício assistencial, serão prejudicados pelo aumento no custo de vida e pela menor oportunidade de encontrarem um emprego estável.
Bolsonaro e seus aliados não parecem muito preocupados com as consequências negativas de passar o rolo-compressor por cima das regras básicas das finanças públicas. “Todo aspecto social nos preocupa muito. Não podemos pensar só em teto de gastos, responsabilidade fiscal”, disse o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), em entrevista ao site da revista Veja. No mínimo, trata-se de uma visão muito restrita daquilo que seja pensar no aspecto social. O ministro-chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira (PP), declarou que o mercado já “precificou” o gasto extra-teto. Ou seja, o governo parece pouco preocupado com as consequências.
Bolsonaro e Lira, obviamente, negarão que se trata de um plano eleitoreiro. Mas havia diversas propostas em discussão que permitiriam um aperfeiçoamento do Bolsa Família e sem driblar o teto de gastos. Para isso, contudo, o governo e seus aliados do Centrão teriam que fazer escolhas e enxugar outros gastos, como os repasses bilionários feitos com as emendas parlamentares. Sobre isso, vale reler a entrevista recente do economista Naercio Menezes, um dos maiores especialistas em políticais sociais do País, à Folha: “O dinheiro existe. A questão é como conseguir mexer com interesses envolvidos na sua distribuição. Uma minoria capturou esses recursos”.
Deixando de lado as propostas estruturadas de reforma dos programas sociais, Bolsonaro e Lira optaram pelo caminho fácil de dar uma pedalada fiscal — mas vão tentar passar leis e decretos para que tudo fique dentro da Lei de Responsabilidade Fiscal e o gasto extra-teto não configure crime de responsabilidade. Querem evitar o destino de Dilma Rousseff. Resta ver se o Congresso, o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal de Contas da União vão tolerar essa enorme pedalada.