Em sua primeira viagem internacional, o presidente americano tenta superar a herança maldita de Trump e forjar estratégia conjunta para enfrentar o avanço chinês. Investigação sobre a origem da pandemia estará em debate.
Artigo de Vinícius Müller, doutor em história econômica, professor do Insper e do CLP
O presidente dos EUA, Joe Biden, faz a sua primeira viagem internacional tendo na agenda reuniões de cúpula do G7, o grupo das nações mais poderosas do mundo, encontros na União Europeia e na Otan, o tratado de segurança do Atlântico Norte, além de uma série de reuniões individuais com líderes europeus. Será o primeiro grande ato de Biden na arena internacional desde a sua posse. Sua missão primordial será restabelecer as pontes do multilateralismo solapadas pelo isolacionismo populista de Donald Trump.
Para os americanos e seus aliados, a Casa Branca apresenta a viagem como uma iniciativa em defesa da democracia ante o avanço de governos autoritários. Biden trabalha para angariar apoio e estabelecer laços em torno de princípios de colaboração e do livre mercado como contraponto à China.
As ações de Biden demonstram que para os EUA as políticas de contenção do avanço chinês continuam uma prioridade. Trump e seus métodos saíram de cena, mas não o entendimento político de que os americanos precisam reagir para não cederem terreno econômico e geopolítico para o adversário asiático. Prova disso é que acaba de ser aprovado no Senado, com apoio bipartidário, um pacote no valor de US$ 250 bilhões para o país ampliar os seus investimentos em pesquisa e tecnologia.
O plano segue agora para votação na Câmara. Biden também anunciou que os EUA doarão a cerca de 100 países um total de 500 milhões de doses de vacinas da Pfizer e da Moderna ao longo do próximo ano. É um contragolpe à diplomacia da vacina que vem sendo praticada por Pequim. Biden também determinou que se investigue a fundo a possibilidade de o vírus da Covid-19 ter vazado de um laboratório de Wuhan e quer a ajuda dos europeus na elucidação da origem da pandemia.
Biden vai dando mostras de seu empenho em reerguer os valores multilaterais e assim esvaziar as tensões geopolíticas da escalada recente na guerra fria entre EUA e China. Para muitos especialistas em relações internacionais, quanto maior a integração econômica, menor a chance de ocorrer um conflito bélico. É algo que poderá ser colocado à prova em breve.
A vitória da economia de mercado dos EUA sobre o dirigismo soviético serviu de antessala à ascensão chinesa que, indubitavelmente, ocorreu voltada à sua integração econômica ao mercado global. Ao mesmo tempo, a China insiste em destacar suas diferenças com a democracia liberal, seja em sua relação com Hong Kong e Taiwan, seja no reforço do poder de Xi Jinping.
E se a integração chinesa ocorreu sob as regras da liderança norte-americana (lembremos do ingresso da China na OMC, em 2001), durante a presidência de Trump essa liderança mostrou-se, em grande medida, refratária ao papel exercido pelos próprios EUA no segundo pós-guerra.
A ascensão da China e a negação da liderança dos EUA pelos próprios americanos fizeram com que a antiga analogia da “Armadilha de Tucídides” fosse resgatada. Essa “armadilha” diz que quando a ascensão de uma nova potência ameaça outra já estabelecida, mesmo que tenham características comuns, as diferenças entre elas levam-nas à guerra. Na Antiguidade, diz Tucídides, a ascensão da aristocrática Esparta frente à democrática Atenas culminou na Guerra do Peloponeso.
Essa analogia pode explicar, segundo seus defensores, tanto a Primeira Guerra entre a ascendente Alemanha e as assentadas Inglaterra e França, quanto a situação entre a China e os EUA hoje. Porém, a integração econômica que envolve as potências atuais serviria de obstáculo a uma guerra que, no máximo, seria comercial e tecnológica – portanto, insuficiente para um conflito bélico.
A vitória de Joe Biden e a retomada de uma agenda ideológica e de valores, como direitos humanos, voltada ao reposicionamento da liderança dos EUA, acendeu uma nova maneira de entendermos os limites da integração econômica entre as duas potências e a retomada de preocupações militares. Assim, os alertas japoneses sobre a expansão militar chinesa no indo-pacífico e o endurecimento da posição do gigante asiático em relação a Taiwan e Hong Kong hoje parecem fazer mais barulho do que ontem. E a pandemia, com sua possível origem chinesa, torna essa relação ainda mais delicada.
A possibilidade de o vírus ter escapado de um laboratório chinês, o que soava como teoria da conspiração, ganhou nova rodada de especulações quando a Austrália, país que nem de longe é caracterizado por posturas populistas, realimentou essa versão. A China prontamente lembrou que o país da Oceania é signatário de um acordo com Índia, Japão e EUA, o que parece ser uma resposta ao avanço do comércio chinês no centro asiático. Contudo, Biden levantou a mesma suspeita, dando apoio público às investigações sobre o comportamento chinês nos primeiros dias daquilo que se transformou na pandemia global.
As tensões entre China e EUA vão culminar em uma guerra aberta? Os interesses comerciais de lado a lado pesam, mas, assim como no passado, o mercado não está blindado totalmente de outros fatores – históricos, religiosos e geopolíticos. Se não é o mercado que causa a guerra, tampouco ele é capaz de, sozinho, evitá-la.