Professores do ensino básico e enfermeiros levariam mais de 10 mil anos de trabalho para atingir um patamar de remuneração semelhante ao da elite do funcionalismo. Apenas reforma ampla dará fim a privilégios
Um professor do nível fundamental em uma escola pública que ganhe o piso do Ministério da Educação, de pouco mais de R$ 2.800, precisará de mais de 10 mil anos de trabalho para chegar perto de um salário recebido pela elite do funcionalismo público, cujo teto legal é de R$ 39,3 mil. Seria esse também o tempo necessário para um enfermeiro que ganhe hoje o piso salarial chegue perto dos maiores salários do funcionalismo, levando-se em consideração o tempo médio de progressão salarial desses profissionais.
Já um jovem que esteja no segundo ano de trabalho em uma empresa e ganhe R$ 2.532, o salário médio pago no País, levará mais de 14 mil anos para alcançar o teto do funcionalismo. Caso uma pessoa receba mensalmente esses mesmos R$ 2.532 na iniciativa e já esteja no décimo ano de trabalho, teria que esperar mais de 17 mil anos para ganhar um vencimento próximo aos R$ 39,3 mil.
Esses exemplos ilustrativos das disparidades salariais no País foram estimados por meio da Calculadora dos Supersalários, uma plataforma interativa idealizada pelo Centro de Liderança Pública (CLP) e pelo movimento Unidos pelo Brasil. O objetivo é sensibilizar as autoridades políticas e a sociedade civil para a urgência da aprovação em definitivo do PL dos Supersalários e também da necessidade de passar no Congresso uma reforma administrativa ampla.
Na semana passada, a Câmara aprovou finalmente o Projeto de Lei 6726/16, o PL dos Supersalários, que regulamenta os pagamentos adicionais além do teto legal e barra as brechas para os supersalários na elite do funcionalismo. O texto volta agora para o Senado.
O teto constitucional para o salário de um servidor deveria ser o pagamento de um ministro do Supremo Tribunal Federal, que é hoje de R$ 39.293,32. É um salário extremamente elevado para os padrões nacionais, como evidencia a calculadora. Ainda assim, a elite do funcionalismo vem se beneficiando, há anos, de uma série de brechas regulatórias para ampliar os seus vencimentos para além do limite.
Em todo o País — no governo federal, nos estados e nos municípios–, existem centenas de regras específicas que asseguram a alguns servidores o direito de ganhar auxílios e verbas indenizatórias que furam o teto. A maior parte daqueles que ganham acima do limite constitucional são juízes, procuradores e outros funcionários públicos de carreiras jurídicas.
Existem ao menos 25 mil servidores que ganham acima do teto. O pagamento médio para além do limite legal é de R$ 8,5 mil. De acordo com o IBGE, o rendimento médio dos brasileiros ocupados é de R$ 2.532. Portanto, apenas esse adicional ganho pelo topo do funcionalismo representa mais do que o triplo daquilo recebido pela grande maioria dos brasileiros.
A elite agraciada com os supersalários representa 0,2% de um total de 11 milhões de servidores. Mas o custo de seus ganhos extra teto é de pelo menos R$ 2,6 bilhões ao ano, segundo uma nota técnica do CLP. Mas pode ser ainda maior, de acordo com estimativas do governo e do Congresso. Fala-se em custo anual superior a R$ 10 bilhões, considerando-se estados e municípios.
Privilégios e concentração de renda
Os salários descolados da realidade são uma máquina de aumento das desigualdades e de concentração de renda. Um trabalhador do setor público federal ganha 67% mais do que um trabalhador do setor privado com qualificações semelhantes, revelou um estudo do Banco Mundial. Foi a maior diferença encontrada entre mais de 50 países analisados na comparação.
Dentro do funcionalismo também há profundas desigualdades. Os servidores municipais ganham muito menos do que a elite do funcionalismo federal — sobretudo aquela aninhada nos altos postos do Judiciário e do Ministério Público. Uma nota técnica do CLP, assinada pelos economistas Daniel Duque e Pedro Trippi, dá a dimensão das disparidades.
Pelo índice de Gini, quanto mais perto de 1 for o número, maior a desigualdade. Observando-se apenas os números do setor privado, a desigualdade brasileira fica abaixo de 0,4 na maior parte das regiões. Como mostra o quadro abaixo, a desigualdade de renda maior está no setor público — fica em 0,5 em algumas regiões.
69 mil em cargos extintos
Uma outra anomalia do funcionalismo federal é a existência de 69 mil servidores ativos cujos cargos foram extintos. Os números foram apresentados pelo secretário de Gestão e Desempenho de Pessoal do Ministério da Economia, Leonardo Mattos Sultani, em debate na Câmara sobre a PEC 32, que trata da reforma administrativa. São funções como ascensorista, recreacionista, barbeiro, operadores de telex e de videotape, e até mesmo açougueiro, afinador de instrumentos e operador de destilaria.
Mais de 10% dos atuais 585 mil servidores da ativa, portanto, foram contratados para funções que ou não existem mais ou são desnecessárias, como afirmou Sultani. Ainda assim, dispõem, pelas regras atuais, de estabilidade e nem sempre é simples acomodá-los em outras atividades. Custo anual com o pagamento desses servidores: R$ 8,2 bilhões.
No Brasil, 87 a cada 100 servidores possuem estabilidade. Na Itália o percentual é de 15%, em Portugal de 10% e na Suécia de apenas 2%. Na Nova Zelândia, nenhum funcionário público tem estabilidade assegurada nem vínculo permanente. São feitos contratos com prazos de até cinco anos, similares aos do setor privado.
A aprovação na Câmara do PL dos Supersalários foi um grande passo no sentido de fechar as brechas dos privilégios e anacronismos na remuneração do setor público. Existe a expectativa de que o projeto passe no Senado logo depois do fim do recesso parlamentar.
Seria uma ótima notícia, mas ainda serão necessários diversos ajustes para modernizar a estrutura de carreiras do funcionalismo, entre eles a introdução de critérios de avaliação para incentivar a produtividade dos servidores. Sem uma reforma ampla, continuarão existindo disparidades profundas entre a elite do setor público e o restante dos trabalhadores, como evidencia a Calculadora dos Supersalários, e os serviços prestados continuarão aquém das necessidades do País.