Para o Brasil, o multilateralismo é tática diplomática de sucesso desde a Primeira República. Em poucos momentos da história, uma civilização com este perfil foi tão necessária quanto agora. Artigo de Pedro Vormittag detalha oportunidades para uma posição da diplomacia brasileira em cinco reuniões programadas para 2021.
Pedro Vormittag | Bacharel em Direito pela USP e mestrado em Gestão Internacional pela Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV EAESP)
Os últimos tempos não foram fáceis para o multilateralismo. Depois de uma turbulenta década de 2010, marcada pela ascenção de nacionalismos populistas e encerrada com uma pandemia global, a década de 2020 pode inaugurar tempos de alívio ou até de reinvenção das agendas de cooperação global. Em 2021, o calendário de um sistema internacional pós-Trump e progressivamente pós-pandemia prevê a realização de cúpulas internacionais voltadas ao endereçamento de alguns dos desafios inescapáveis da comunidade global.
Destes temas, a maioria, senão todos, já não consegue mais ser superada pelo voluntarismo de um pequeno grupo de potências econômicas ou militares, como durante o século 20. A seguir, destacamos cinco reuniões internacionais de cúpula programadas para 2021, detalhando sua pauta e sugerindo caminhos para uma posição da diplomacia brasileira em cada oportunidade.
Cúpula das Democracias
Washington, Estados Unidos | Data ainda não definida
Pauta
Proposta da campanha de Joe Biden à presidência dos Estados Unidos, a Cúpula das Democracias seria uma inédita reunião entre as maiores democracias do mundo. Sua proposta é fruto do pensamento estratégico de think-tanks como o Atlantic Council e ambiciona endereçar, a um só tempo, ao menos três interesses de longo prazo de Washington: simbolizar para o mundo a ruptura americana com o flerte autoritário da Era Trump, reafirmar clássicas alianças americanas com as potências europeias e, talvez principalmente, organizar um fórum multilateral de contraponto à crescente força chinesa no sistema internacional.
A novidade da Cúpula é sua maior vulnerabilidade: que nações serão consideradas suficientemente democráticas para figurar entre as convidadas? Como endereçar convites a nações de democracias frágeis, com quem Washington, ainda assim, gostaria de manter mais perto de si do que de Pequim, como Brasil, Turquia e Polônia?
Posição brasileira
A prioridade do futuro D-10 é contemplar a região indo-pacífica, atraindo países como a Índia, a Coreia do Sul e a Austrália. No momento, até mesmo um convite ao Brasil é incerto, haja vista a relutância com que a administração Biden vê alguns dos desmandos autoritários do governo brasileiro. No entanto, uma reunião de regimes democráticos que não inclua o mundo emergente corre o risco de ser apenas um novo G-7. Em que pese os recentes vandalismos praticados contra o regime democrático brasileiro, ainda parece inegável que o Brasil é uma democracia com mais de 200 milhões de habitantes, lar de uma economia de peso significativo e um ator internacional com um importante histórico de contribuição diplomática ao multilateralismo. Brasília, por óbvio, deve aceitar o eventual convite e se organizar para sensibilizar o mundo a respeito das oportunidades e dos desafios de um regime democrático na periferia do capitalismo.
COP 15 – Convenção das Nações Unidas sobre Diversidade Biológica
Kunming, China | Maio
Pauta
A preservação da biodiversidade é um dos mais relevantes desdobramentos da agenda global de reparação, mitigação e adaptação climática. O aumento da temperatura mundial ameaça a fauna e a flora, impondo limitações graves ao potencial de desenvolvimento de uma economia global verde, por exemplo, pela indústria farmacêutica, que veria cancelada seu acesso a um sem número de espécies ainda não estudadas — em cujos processos metabólicos podem residir soluções terapêuticas importantes para virtualmente qualquer doença.
No momento, o Protocolo de Nagoya assinado em 2010 segue como fronteira da negociação diplomática multilateral na matéria, estabelecendo regras para o acesso e repartição dos recursos genéticos das espécies. No encontro, um salto de qualidade na definição e mensuração dos esforços em prol da biodiversidade será o foco da campanha “New Deal para a Natureza e as Pessoas”, por entidades como a WWF.
Posição brasileira
Por força de sua natureza exuberante e diversa, o protagonismo brasileiro no debate internacional sobre biodiversidade é visto como histórico e natural, tendo a diplomacia nacional contribuído decisivamente para a Convenção sobre Diversidade Biológica no Rio de Janeiro ainda em 1992 e, mais recentemente, para a construção técnica do texto final do Protocolo de Nagoya (ironicamente só em 2020 ratificado pelo Congresso Nacional). Para o cientista brasileiro Carlos Nobre, um dos mais celebrados ambientalistas do mundo, o aproveitamento sustentável da biodiversidade pode transformar o Brasil em nada menos do que uma das grandes potências tecnológicas do século 21.
O Brasil faria bem em retomar seu pioneirismo no tema, para o bem do seu próprio interesse nacional e para o interesse da humanidade em sua própria sobrevivência física e econômica, aproveitando a COP-15 para pressionar por financiamento internacional a projetos sustentáveis de revolução econômica e tecnológica nos países amazônicos.
Conferência Ministerial da OMC
Nur-Sultan, Cazaquistão | Data ainda não definida
Pauta
Provavelmente a agenda global mais machucada durante a Era Trump, o livre comércio já viveu dias melhores. A própria realização do evento da OMC ainda não é certa, mas a retomada da agenda multilateral de livre comércio é parada obrigatória de uma recuperação econômica global pós-COVID-19. Enquanto isso, os bons ventos da diplomacia comercial sopram do Pacífico.
A China acaba de costurar a Parceria Econômica Abrangente (RCEP, na sigla em inglês), hoje o maior bloco comercial do mundo, erguido no vácuo deixado pelo ocaso da Parceria Transpacífica (TPP, na sigla em inglês) engenhada por Obama, e engavetada por Trump. Na pauta, uma urgente necessidade de atualização da pauta comercial global. Desafios como o da governança dos fluxos transnacionais de dados, realidade incontornável em tempos de pandemia e explosão do e-commerce, ou da justiça econômica no acesso às vacinas contra COVID-19, carecem da articulação diplomática de peso que instituições como a OMC e a UNCTAD (braço da ONU dedicado ao tema) podem mobilizar. A economista nigeriana Ngozi Okonjo-Iweala, recém-eleita Diretora Geral da OMC, ocupava até poucos dias a presidência do Conselho da GAVI, iniciativa da Fundação Bill e Melinda Gates para o fornecimento de vacinas nas regiões mais pobres do globo.
Na ONU, a nova Secretária-Geral da UNCTAD é a enfermeira, ex-Ministra e ex-Senadora belga Isabelle Durant, ativa articuladora de políticas sociais de saúde no contexto europeu e internacional.
Posição brasileira
De um modo geral, o livre comércio será sempre ferramenta útil ao desenvolvimento econômico brasileiro. Apesar de sua economia ainda insistentemente fechada ao mundo, a política comercial brasileira tem tradição de sucesso, tanto na defesa de seus interesses junto à OMC, quanto na liderança da gestão multilateral do livre comércio, tendo a diplomacia brasileira emprestado alguns dos seus melhores quadros para a direção da OMC e da UNCTAD. Após amargar mais uma década perdida com raquítico crescimento de seu PIB, a economia brasileira não pode se dar ao luxo de prescindir de mercados e produtos para além de suas fronteiras se quiser retomar algum crescimento econômico no futuro próximo.
Encontro Presidencial do Mercosul
Foz do Iguaçu, Brasil | Março
Pauta
Anunciada em fevereiro, como de improviso, pelo Presidente Jair Bolsonaro por ocasião da visita do Presidente uruguaio Luis Alberto Lacalle Pou a Brasília, o encontro do Mercosul atende a uma necessidade de mobilizar o bloco em favor das agendas de crescimento econômico dos seus países membros.
Posição brasileira
O primeiro desafio brasileiro em Foz do Iguaçu seria contornar o constrangimento diante de Argentina, Paraguai e Uruguai, cujas economias saem prejudicadas pelo emperramento da cooperação comercial entre Mercosul e União Europeia, graças à política anti-ambiental levada à cabo pelo governo brasileiro em seu próprio território, contribuindo para impedir a ratificação europeia do acordo de livre comércio entre os dois blocos.
Superada a questão do clima na reunião, o aniversário de 30 anos do bloco será oportunidade válida para avançar na agenda de dinamização do Mercosul, em busca de soluções que permitam maior flexibilidade da negociação comercial individual dos seus membros com outras nações e blocos, sem prejuízo da aliança regional.
Na pauta, também a necessidade de expandir a rede hidroviária do Cone Sul, fortalecendo o escoamento produtivo das indústrias da região. A oportunidade será bem aproveitada se marcar o início de uma articulação de convergência comercial com a recém-criada RCEP no Pacífico.
COP 26 – Conferência da UNFCCC
Glasgow, Escócia | Novembro
Pauta
A COP-26 é o mais importante evento multilateral da política internacional em 2021. Marcado para novembro em um Reino Unido pós-Brexit, a Cúpula poderá vir a ser o primeiro encontro presencial entre líderes mundiais pós-pandemia. O evento também marcará o reposicionamento dos Estados Unidos na política internacional do clima, e administração Biden estará ávida por recuperar posições na corrida tecnológica pela neutralidade das emissões de carbono, hoje liderada pela União Europeia e pela China. Trata-se também do primeiro encontro de alto nível em que se fará um balanço das NDC’s (Contribuições Nacionalmente Determinadas) combinadas por cada país no âmbito dos Acordos de Paris, assinados na COP 21 de 2015.
Posição brasileira
O ideal seria que a Cúpula fosse palco de um anúncio de metas mais agressivas para neutralidade das emissões de carbono no Brasil, apresentando projetos mais detalhados nesta direção, capazes de atrair investimentos internacionais na corrida climática global. À luz da atual postura do governo brasileiro diante da agenda de preservação ambiental em biomas cruciais para o mundo como a Amazônia e o Pantanal, porém, o Itamaraty já pode ser considerado vitorioso se sair da COP-26 sem piorar ainda mais o derretimento da posição do Brasil neste debate.
Para além das Cúpulas listadas, é válido mencionar a necessidade de o Brasil fazer jus ao papel de destaque que lhe cabe ao inaugurar os trabalhos Assembleia Geral da ONU, a ser realizada em Nova York, em setembro.
Na Cúpula do G-20, a ser realizada em Roma, em outubro, o Brasil faria bem em chamar para si a responsabilidade de tirar do papel a agenda “People, Prosperity, and the Planet”, apontando em sua própria história os inúmero momentos em que conseguiu equilibrar preservação ambiental, produtividade agrícola e desenvolvimento.
Finalmente, na Cúpula Anual dos BRICS, a ser realizada na Índia nos próximos meses, o Brasil faria bem em estreitar relações com seus aliados emergentes, aproveitando as soluções do New Development Bank para destravar projetos de investimento em infraestrutura em territóro nacional.
Para o Brasil, o multilateralismo é uma tática diplomática de sucesso ao menos desde a Primeira República e nossos primeiros engajamentos com a Sociedade das Nações, precursora da ONU. Diplomatas brasileiros arquitetaram, inauguraram, ou comandaram praticamente todas as mais importantes instituições multilaterais do mundo, da velha OMS ao recente Banco dos BRICS. É que por estes lados do globo, a comunidade de países olha e não enxerga “veleidades hegemônicas ou aspirações de domínio” (Ricupero p. 333)*, mas uma nação pacífica, de vasto território, enorme população, rica de cultura e vocação política. Em poucos momentos da história uma civilização com este perfil foi tão necessária quanto na década que se inaugura em 2021.
*Ricupero, Rubens. 2017. A diplomacia na construção do Brasil: 1750 – 2016. Versal Editores, 1 ed.