O excesso de criatividade que transformou o Brasil em uma inexpugnável selva tributária será resumido e simplificado no Imposto sobre Bens e Serviços (IBS).
“O modelo da PEC 45 não resolve alguns problemas da tributação de bens e serviços. Ele resolve todos os problemas da tributação de bens e serviços.”
É assim, com confiança em doses industriais, que o economista Bernard Appy descreve o projeto de reforma tributária formulado por ele e apresentado à Câmara pelo deputado Baleia Rossi (MDB-SP). Com apoio de Rodrigo Maia, a PEC 45 tramita em pista livre. A proposta unifica 5.570 leis municipais definindo diferentes regimes de impostos sobre serviços e produtos, 27 legislações estaduais de ICMS e toda a legiferante ganância federal do IPI, PIS e Cofins. Todo esse excesso de criatividade que transformou o Brasil em uma inexpugnável selva tributária será resumido e simplificado no Imposto sobre Bens e Serviços (IBS).
O IBS é um claro raio ordenador que cai sobre a selva tributária brasileira. Para se ter uma ideia, a nova norma prevê uma alíquota única para todos os milhares produtos e serviços sobre os quais os municípios cobram impostos.
O projeto já passou pela CCJ e está em comissão especial presidida pelo deputado Hildo Rocha (MDB-MA), que promete levá-la ao plenário em outubro. Como a PEC 45 não tramita com a marca do governo, a oposição dispensou o tom de obstrução visto na reforma da previdência. A celeridade tem sido vista com otimismo, reforçado pela adesão unânime dos secretários estaduais da fazenda, que manifestaram apoio à medida.
Após evitar o colapso das contas públicas com as mudanças na previdência, é razoável que a prioridade número um do Brasil seja reformar as distorções institucionais que prejudicam nossa produtividade. E nenhuma delas é tão danosa quanto a insana tributação dos bens e serviços aqui produzidos. O sistema tributário é responsável pela nossa pior posição no Doing Business, relatório do Banco Mundial que avalia o ambiente de negócios pelo mundo. Entre 190 países analisados, apenas Congo, Bolívia, República Centro-Africana, Chade, Venezuela e Somália aparecem piores do que o Brasil.
A aprovação da PEC 45 sem graves desidratações significaria um passo imenso para o Brasil. Passaríamos de uma das piores tributações de bens e serviços do mundo para uma das melhores e mais modernas. Hoje, um amontoado de leis e benefícios tributários, descoordenados e irracionais, distorcem a atividade empreendedora por aqui. O sistema de impostos que diferencia cada produto – pão não paga PIS/Cofins, farinha de rosca (pão dormido triturado) paga – incentiva a judicialização da economia, que no Brasil também é digna de recordes mundiais.
O IBS, como concebido pelo economista Bernard Appy com auxílio de juristas da FGV São Paulo, tem uma grande vantagem. Com o novo imposto, o método de geração de valor será secundário para o empreendedor. Não importará se a empreiteira produz um prédio construído pelas vias tradicionais – que, hoje, geralmente paga alíquotas inferiores a 10% – ou com estruturas pré-moldadas – mais produtivas, mas pagam alíquotas superiores a 20% por integrarem a indústria, o setor mais onerado pelo atual sistema.
Todos os bens e serviços terão a mesma alíquota. Desse modo, a oferta e a demanda passam a predominar sobre os impostos entre os fatores que determinam a viabilidade comercial de um bem ou serviço. Na prática, o IBS significa a substituição de boa parte da economia cartorial por uma economia de mercado.
De onde veio a proposta em discussão
Nos primeiros anos do governo Lula, Bernard Appy transitou entre os principais postos do Ministério da Fazenda – até 2005, era secretário-executivo, depois sucedeu Marcos Lisboa na Secretaria de Política Econômica. Em agosto de 2008, assumiu a recém-criada Secretaria Extraordinária de Reformas Econômico-Fiscais. Era ele o responsável pela fracassada tentativa de reforma tributária do governo Lula, ferida de morte pela oposição de alguns governadores. Em agosto de 2009, exatos doze meses depois, a secretaria foi extinta. Appy saiu do governo, mas continuou dedicado ao tema.
De lá pra cá, ele fundou o think tank Centro de Cidadania Fiscal (CCiF), abrigado na escola de direito da FGV paulista e financiado por doações empresariais de Itaú, Vale, Ambev, Natura e outras gigantes do capitalismo nacional. Desde então, o CCiF promove debates ouvindo políticos de diversos partidos e esferas federativas. Ainda em 2018, todas as principais candidaturas, de Haddad a Bolsonaro, se comprometeram com uma reforma semelhante à do CCiF.
Uma das grandes virtudes do projeto está no desenho original feito por excelentes especialistas, cuja obra foi, posteriormente, lapidada por debates promovidos no Centro de Cidadania Fiscal. Nessa fase foram feitas mudanças em sintonia com forças poderosas, como é o caso dos governadores, que inviabilizaram reformas anteriores.
Em 2019, uma sequência de acasos ajudou a ideia de uma reforma tributária a andar em Brasília. Primeiro, Bolsonaro escalou o economista Marcos Cintra para formular uma proposta alternativa patrocinada pelo executivo. Cintra passou a defender a substituição de vários tributos federais por um imposto sobre movimentações financeiras – no fundo uma CPMF com esteróides. Nenhum imposto é mais impopular no Brasil do que a CPMF. A rejeição certa do Imposto Cintra atiçou o instinto político de Rodrigo Maia. O presidente da Câmara dos Deputados decidiu, então, por uma terceira via, apoiando ostensivamente o texto de reforma tributária de autoria do deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR), cuja qualidade intrínseca é de garantir a paternidade da iniciativa para o Parlamento.
Não basta uma reforma
Em triunfo raro do bom senso em uma assembléia política movida a egos e ânsia de se reeleger a cada quatro anos, cogita-se seriamente no Congresso a fusão das propostas concorrentes em um único texto conciliador das virtudes de cada uma das três.
Se for isso, mesmo temos razões fortes para torcer para que o projeto de Appy predomine no texto conciliador final. Ele não é apenas o mais bem acabado, mas o que reúne mais possibilidade de ser aprovado. Nas próprias palavras do autor, o projeto é “desenhado para combater impiedosamente as distorções da atual tributação de bens e serviços”.
Os ganhos potenciais são diversos: desoneração de investimentos, das exportações e da indústria, radical redução da complexidade e da judicialização, fim da guerra do ICMS, transparência fiscal, combate a desigualdade e substituição de políticas fracassadas, como a Zona Franca de Manaus, por outras de mesma intenção e desenho mais moderno.
Como (não) funciona a atual tributação de bens e serviços
Atualmente, bens e serviços podem pagar o ISS para o município, o ICMS para o estado, além de IPI, PIS e Cofins para o governo federal. Cada setor paga seus impostos de uma forma, com uma alíquota diferente para cada produto. A tabela abaixo, produzida pelo CCIF, sintetiza os impostos que costumam ser pagos por alguns setores (ver tabela abaixo).
O imposto é sempre pago na origem – isto é, ao ente federativo onde se localiza a empresa – ao invés de no destino – onde está o consumidor. Isto leva os estados e municípios a grandes guerras em torno de incentivos tributários para certos setores, uma batalha destrutiva que tem seu ápice no ICMS.
Com consequência, muitas empresas são incentivadas a tomar decisões que prejudicam a produtividade, elevando custos de produção, mas aumentam a lucratividade, por diminuírem custos de tributação. A Zona Franca de Manaus, distante dos consumidores, talvez seja o exemplo máximo desse tipo de distorção.
Em estudo do Banco Mundial sobre as horas gastas por ano para entender o sistema de impostos, uma medida da complexidade tributária, estamos na lanterninha com 1958 horas, muito à frente da vice-lanterna Bolívia e suas 1025 horas.
Essa complexidade tem relação direta com o sistema de múltiplas alíquotas para múltiplos produtos, reguladas por diversos tribunais e casas legislativas. No fim das contas, o empreendedor nem sabe o que deve ser pago. Daí decorrem também os altos índices de litígio vistos no Brasil, com processos que podem matar empresas do dia para a noite.
Como se não bastasse, boa parte do sistema brasileiro se baseia na cumulatividade. Diferentes impostos são pagos em cada etapa da cadeia de produção e alguns desses impostos se repetem. Além de distorcer a economia, complicar a vida do empreendedor e tributar produtos semelhantes com alíquotas diferentes, o sistema vigente ainda é pouco transparente, pois a cumulatividade dificulta que o consumidor saiba quanto está pagando em impostos quando compra algum bem ou serviço.
Para fugir desses problemas, todas as economias modernas tributam bens e serviços com um imposto sobre valor adicionado cobrado no destino. O Brasil seguirá por este caminho caso substitua mesmo, como parece ser o caso, esses cinco impostos pelo novo IBS.
O novo IBS
O novo Imposto sobre Bens e Serviços delineado no projeto de Appy é simultaneamente municipal, estadual e federal. Cada ente da federação é responsável por uma parcela da alíquota. Deste modo, o imposto tem um valor diferente conforme o município do consumidor. Esta diferenciação é necessária por questões constitucionais – estados e municípios precisam de autonomia para definir quanto comprar. Mas o impacto na produtividade não é relevante.
O IBS é desenhado de modo que toda a tributação incida sobre o consumo final, de modo transparente. Ou seja, não há cumulatividade (imposto sobre imposto) e o custo tributário de um produto será igual ao preço final de venda multiplicado pela alíquota do local de consumo.
Leia abaixo a simulação simplificada do IBS com alíquota de 3% em uma cadeia produtiva de apenas três estágios:
O Estágio 1 é representado nesse exemplo por um produtor primário de fibras de algodão. O produtor vende 1000 reais de seu produto para uma empresa têxtil, nosso exemplo de Estágio 2. Como o IBS é de 3%, a transação custará 30 reais ao produtor de algodão. O algodão processado vira tecido que é vendido por 2 000 reais a uma empresa que fabrica roupas. Por um regime de taxação em cadeia, a empresa do Estágio 2 pagaria 60 reais de imposto. Com a entrada em vigor do BIS, de tarifas não-cumulativas ela pagará a metade, ou seja, 30 reais. A fabricante de tecidos recebe o desconto integral pelos 30 reais que já foram pagos pelo produtor de algodão. A mesma lógica vale para a empresa do Estágio 3, uma marca de roupas que usa o tecido para produzir um vestido oferecido por 4 000 reais ao consumidor final. O IBS pago pela marca de roupas será de 60 reais e não de 120 reais, pois ela poderá abater os 60 reais pagos anteriormente pelas outras empresas da cadeia produtiva.
Assim, a empresa do Estágio 1 pagou 30 reais em impostos, a empresa do Estágio 2 outros 30 reais e a do Estágio 3 pagou 120 reais. Essa contribuição em etapas do IBS é o que se define como imposto sobre valor adicionado, sistema que prevalece nas economias da maioria dos países capitalistas do mundo.
Como o imposto é pago sempre no local de consumo, e as exportações são consumidas fora do Brasil, não há pagamento de IBS por empresa exportadora. Da mesma forma, caso uma fábrica decida comprar máquinas para melhorar sua produtividade, todos os impostos pagos em etapas anteriores da produção do maquinário se transformam em descontos no custo final. Tecnicamente o IBS é, portanto, um imposto sobre o consumo, mesmo sendo pago durante a fase de produção dos bens e serviços.
Principalmente, o IBS isenta de pagamento os investimentos e as exportações. Essa característica é essencial para um país que, como o Brasil, precisa crescer e criar empregos.
Por que o IBS atende aos 4 princípios da tributação eficiente
O IBS foi formulado cuidadosamente por acadêmicos. Não por acaso, seu desenho passa por um esforço consciente para satisfazer as regras básicas da boa tributação. Nas notas técnicas do Centro de Cidadania Fiscal, o IBS é justificado como resultado de quatro fundamentos comuns na literatura acadêmica sobre o assunto: simplicidade, transparência, neutralidade e equidade. Um imposto deste tipo é especialmente bem vindo porque o atual sistema é desastroso segundo esses quatro princípios.
Com milhares de legislações, alíquotas e milhões de processos judiciais, é evidente que a simplicidade passa longe dos cincos impostos eliminados na reforma tributária. O IBS, por sua vez, tem sua maior complexidade no fato de existir uma alíquota para cada município, o que pode ser resolvido por softwares muito simples, ou mesmo por uma planilha no Excel.
A transparência também vai mal, dada a complexidade da tributação e a cumulatividade – e é justamente esta uma das funções do imposto sobre valor adicionado, que dá descontos integrais aos impostos pagos em fases anteriores da produção.
Neutralidade é um conceito econômico menos óbvio, mas talvez seja o mais importante princípio. Um imposto neutro é aquele que não afeta as decisões do empreendedor sobre o processo produtivo. Quando cada setor é tributado de uma forma e os governadores promovem uma guerra de isenções do ICMS, estudar a legislação tributária e comprar deputados pode ser mais lucrativo do que aumentar a produtividade.
A cobrança da mesma alíquota para todos os bens e serviços se deve à busca por uma tributação neutra. No desenho original do IBS, constante na PEC 45, há apenas uma exceção feita aos produtos que geram externalidades negativas para terceiros – cigarro, por exemplo. Todo o resto é tratado da mesma força.
Por fim, há o princípio da equidade. O atual sistema tributário tenta garanti-lo com políticas de resultado duvidoso, como a isenção da cesta básica. Por outro lado, a alta tributação de serviços como eletricidade e telefonia oneram seriamente a renda da população mais pobre. O texto da PEC 45 propõe a substituição desta isenção pela devolução direta, em dinheiro, dos impostos pagos por beneficiários de programas sociais em produtos da cesta básica. Este programa seria inteiramente financiado pelo fim das isenções. Somada à desoneração de outros serviços, a reforma deve significar um aumento e tanto na renda real de quem mais precisa.
Transição: 10 anos para empresas, 50 anos para o governo
O IBS representaria uma mudança e tanto na economia brasileira. Num primeiro momento, algumas empresas e setores podem perder e outros ganham muito. Há o caso de quem já fez investimentos baseados em benefícios fiscais vigentes, como a Zona Franca de Manaus. Politicamente, não deve ser desprezado o interesse dos governadores e prefeitos, que podem ter sua receita afetada.
Por isso, uma reforma tributária desse tipo precisa envolver certa transição. No caso do IBS, espera-se uma transição de 10 anos para a maioria das empresas e 50 anos para os entes subnacionais.
No primeiro ano de vigência, o IBS seria fixado em 1%, para que se possa estimar a arrecadação do novo imposto, com redução simultânea e proporcional de tributos federais. Este valor valeria por dois anos de testes, e então a alíquota passará a subir linearmente, enquanto os cinco impostos a serem eliminados caem. O IBS terminará sua transição para a maioria das empresas em até 8 anos. A alíquota, ao final da transição, será aquela necessária para não alterar a carga tributária média do Brasil.
Para as finanças públicas, a mudança dura 50 anos. Este prazo longo é visto como necessário para não inviabilizar a aprovação do projeto, pois não seria desejável uma violenta redistribuição de renda, do dia para a noite, entre estados e municípios. Tamanha mudança teria consequências políticas e sociais inesperadas.
Ao fim das contas, os autores da PEC estimam que todos os estados ganham no longo prazo, graças aos benefícios à produtividade do país. Como resultado, o prazo longo faria viabiliza um cenário onde todo o país ganha com a reforma, no curto, médio e longo prazo.