A exigência do percentual mínimo de 30% de candidaturas de mulheres nas chapas proporcionais elevou a participação delas nas eleições. Desafio agora é assegurar condições mínimas culturais e legais para superar o preconceito no mundo político
Artigo de Humberto Dantas
Faz alguns poucos anos, eu e Bruno Souza da Silva, cientista político, escrevemos um artigo acadêmico tentando entender quem eram os vereadores brasileiros a partir de características apresentadas no sistema de divulgação de candidaturas do Tribunal Superior Eleitoral. O cruzamento da questão do gênero com o estado civil nos chamou especialmente a atenção. A partir do instante em que a justiça eleitoral passou a exigir que a cota de 30% de candidaturas do gênero minoritário nas chapas proporcionais fosse atingida, a participação de mulheres efetivamente subiu, assim como também assistimos à elevação do percentual de solteiros e divorciados no geral. Haveria alguma relação entre tais fenômenos?
Sem afeição à estatística, deixo de lado os números e passo a trafegar nas conversas. Com o dado na cabeça, comecei a me aproximar de mulheres em treinamentos, cursos e capacitações que oferto a políticos em todo o Brasil. O objetivo era ouvir histórias e trajetórias.
Uma das portas de entrada para a política em nosso país, a despeito de gênero, é a família. Grupos desse tipo se perpetuam no poder, sendo comum que lideranças empurrem cônjuges, filhos, sobrinhos, primos, tios, parentes de toda espécie para os pleitos. Também é fácil notar que alguns sobrenomes, a despeito de estímulo doméstico, são utilizados para o alavancamento de votos em diferentes regiões do país. Isso está em nossa cultura, em nossa lógica democrática. É assim que muita gente “entra para a política”, e com as mulheres não é diferente.
Diante disso, minha pergunta era bastante comum: como você entrou para a política? Sofre algum preconceito por ser mulher? O preconceito está dentro ou fora de casa? As respostas variam bastante, mas algo merece atenção aqui.
A entrada familiar é a mais comum, mas isso se repete com muitos jovens. Ideologias, vontades pessoais, estímulos acadêmicos, vivências profissionais, experiências das mais diversas aparecem da mesma forma como surgem em tantos outros segmentos. Aqui seria necessária uma pesquisa mais acurada, e a ciência política tem se ocupado de entender isso – a dissertação de Marina Merlo, na USP, é um ótimo começo.
Mas chama a atenção a questão do preconceito. O externo, aquele que vem de segmentos diversos da sociedade, apela para todo tipo de absurdo. Ataca-se a mulher com base em aspectos físicos, mas também se fala em honra, em maus tratos relacionados à sexualidade e ao sexo de maneira geral. A baixaria, em alguns lugares, é grande. Também se diz algo sobre fortalezas e fraquezas, que a política não é lugar para “elas”, que Deus castiga e coisas desse tipo. Pesquisa da USP durante o governo de Marta Suplicy dava conta de indicar que a imprensa colaborava em termos fotográficos. Ela era retratada em jornais, a despeito do assunto, sempre numa condição imputada culturalmente à mulher. A notícia falava de impostos, estava lá a imagem da prefeita mexendo uma panela num mutirão de sopa. O tema era a relação com a Câmara, lá estava ela segurando uma criança. Com Dilma Rousseff a narrativa foi outra, e masculinizaram a presidente ao extremo. Por quê?
Simples, e ao mesmo tempo complexo: porque o mundo é machista. E para além disso, como os exemplos acima são de políticas eleitas pelo PT, certamente nesse texto vai aparecer um plantonista dizendo que sou de esquerda. Poupe-nos, ou exponha-se ao ridículo, atraindo palminhas e emojis de todo tipo.
Mas voltemos ao ponto central: o preconceito. E aqui o que mais me assusta são as reações “dentro de casa”. Homens representantes também são atacados na política pelas vozes das ruas e dos adversários sem limites. O ex-prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, foi questionado sobre sua sexualidade em 2008, o presidente é descrito como um homem de QI limitado, o atual governador paulista é criticado pelas calças que usa e assim por diante. Alguns são cobrados por virilidade, desempenho sexual, vida conjugal e coisas desse tipo. Trata-se, definitivamente, de uma sociedade que confunde aspectos públicos e privados, e levam todo tipo de característica para a definição de seus votos. Uma pena.
Voltemos, no entanto, para as mulheres. Isso porque aqui a situação parece eterna e merece mais atenção e cuidado. Algumas com as quais conversei assumiram coisas tenebrosas. Um grupo diz que está no poder apenas porque maridos, irmãos ou pais estavam impedidos legalmente. Se assumiam, literalmente, como laranjas de grupos políticos – o que também ocorre na realidade de alguns homens. Mas outras diziam que nem tudo o que deveriam fazer era possível de ser realizado porque seus “maridos não deixavam”. Recordo uma ocasião em que uma prefeita de cidade do interior falava sobre a importância das festas de junho em sua cidade. Quando eu disse que sua agenda ficava corrida no período, tendo em conta sua presença demandada em diferentes festejos, a resposta: “Quando meu marido deixa, e vai comigo, eu compareço. Mas sempre ao lado dele. O bicho é muito ciumento e não gosta que eu fique no meio do povo”. Como assim? Uma política eleita longe de sua gente? E ela completou: “Ele não é político, não entende essas coisas. Se não fossem meus irmãos para pará-lo eu apanharia quando volto pra casa”. Uau! Um desabafo desses em um café no intervalo de aula. E a pergunta foi simples: “Sente que sofre algum preconceito por ser mulher na política? De onde vem?”.
Perceba: estamos aqui tratando de pessoas eleitas, poderosas, com força nas mãos e nas mentes para mudarem as suas respectivas realidades. O que fica evidente aqui é: o desafio não está apenas associado ao ingresso da mulher na política, mas às condições mínimas culturais e legais para a sua manutenção de forma democrática e respeitada nesse espaço. E se nem em casa algumas dessas políticas encontram ambiente para serem o que desejam, o desafio é infinitamente maior do que parece. Mulheres casadas, nesse caso em especial, precisam vencer mais do que eleições para que possam ser quem desejam.
Humberto Dantas é doutor em ciência política pela USP e pós-doutor em administração pública pela FGV-SP. Coordenador dos programas de educação do Centro de Liderança Pública – CLP.