Governo ignorou carta da Pfizer e adiou compra de vacinas que poderiam salvar milhares de pessoas. Flexibilização prematura das medidas preventivas trazem o risco de uma terceira onda.
Durante os dois últimos meses, o Brasil conviveu com uma média superior a 2.000 mortes diárias pela Covid-19. Apenas agora, depois de o sistema de saúde em muitas cidades ter ficado perto do colapso, a segunda e mais letal onda de casos da pandemia começa a perder força no País.
A cada dia fica mais evidente que milhares de mortes poderiam ter sido evitadas, não fosse a combinação letal de negligência e incompetência que dá norte a Jair Bolsonaro. Poderíamos estar hoje em uma situação menos angustiante caso o governo tivesse assegurado anteriormente um maior número de doses de vacinas.
Bolsonaro apostou na estratégia assassina da imunidade de rebanho, enquanto fazia piadas sobre o uso de máscaras. Protelou o acordo com a Pfizer e defendeu tratamentos sem comprovação científica. A responsabilidade do presidente no agravamento da crise começa a ganhar contornos mais nítidos nos trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid no Senado.
Em seu depoimento de ontem, o ex-secretário de Comunicação Fabio Wajngarten apresentou uma carta enviada pela Pfizer ao presidente Jair Bolsonaro no dia 12 de setembro de 2020. No documento, o laboratório americano ofereceu a possibilidade de fechar um contrato de fornecimento de imunizantes.
Também receberam a carta o vice-presidente, Hamilton Mourão, o Ministro da Economia, Paulo Guedes, e o então titular Ministro da Saúde, Eduardo Pazuello. De acordo com Wajngarten, as autoridades brasileiras não tiveram nem mesmo a iniciativa de responder prontamente o laboratório.
O silêncio do governo durou quase dois meses. A resposta inicial ocorreu apenas no dia 6 de novembro. O primeiro contrato com a Pfizer foi selado apenas em março. As primeiras doses, poucas, chegaram ao País em abril.
Os números de Israel, onde a imunização foi feita essencialmente com a vacina da Pfizer, mostraram que a vacina tem uma eficácia global de 95%. Esse é um dado recente, mas mesmo em setembro do ano passado já havia evidências sólidas de que a vacina era altamente eficaz no combate ao vírus. Pazuello, quando deixar de se esquivar e finalmente for à CPI, poderá explicar por que o governo demorou tanto tempo em adquirir os imunizantes do laboratório americano.
A cobertura vacinal hoje seria bem maior e muito provavelmente a segunda onda de mortes seria muito menos intensa, caso o País pudesse contar, desde janeiro, com as doses da Pfizer. De acordo com especialistas, algumas dezenas (e talvez centenas) de milhares de mortes poderiam ser poupadas ao longo de 2021 com uma campanha mais efetiva na vacinação.
Na terça-feira, já havia ocorrido um outro depoimento esclarecedor na CPI. O presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Antonio Barra Torres, contou como Jair Bolsonaro pressionou para que a cloroquina fosse oficialmente indicada para o tratamento da doença, apesar de não haver nenhuma prova conclusiva sobre a sua eficácia. Houve um pedido inclusive para alterar a bula do medicamento.
Algumas boas notícias
A boa notícia é que a taxa de transmissão do vírus baixou para menos de 1. Segundo a estimativa do Imperial College, a taxa recuou para 0,91 em abril. Isso significa que cada 100 pessoas infectadas transmitem o vírus para 91, sinalizando, portanto, para uma queda no número de casos.
A redução dos últimos dias reflete fatores como as medidas de distanciamento, a vacinação e, possivelmente, a imunização natural daqueles que já tiveram contato com o vírus. Em média, 755 mil pessoas têm sido vacinadas ao dia. Até agora, um total de 36,5 milhões de pessoas receberam ao menos a primeira dose de alguma vacina, enquanto apenas 18,4 milhões já receberam as duas doses.
Se não houver atrasos no fornecimento de imunizantes, existe a possibilidade de todos os brasileiros acima de 30 anos terem recebido as duas doses até o fim de setembro. Essa faixa etária representa mais da metade da população brasileira e é também a mais diretamente atingida pelo vírus.
4 motivos para preocupação
O refluxo na segunda onda trouxe alívio para o sistema de saúde, mas os números dos contágios e das mortes permanecem extremamente elevados. Os registros oficiais informam que quase 430 mil brasileiros perderam a vida, sendo que a maior parte dos óbitos ocorreu neste ano (235 mil, contra 195 mil em todo 2020).
Há quatro motivos para preocupação com relação à evolução da pandemia nas próximas semanas.
Primeiro, a reabertura do comércio e das atividades econômicas poderá voltar a elevar a taxa de transmissão e, consequentemente, o recrudescimento da pandemia. O ideal, segundo epidemiologistas, era aguardar uma queda mais acentuada na taxa antes de flexibilizar as medidas de distanciamento social. Na primeira onda, os picos de morte ficaram em torno de mil vítimas ao dia. Agora, na segunda onda, os governantes começaram a relaxar as precauções mesmo quando a mortalidade era da ordem de 3.000 ao dia.
Segundo, a baixa umidade do ar e as alterações bruscas de temperatura no inverno favorecem a disseminação das doenças respiratórias, o que também pode contribuir para o aumento da pandemia. – lembrando que o Sars-CoV-2 é um vírus altamente infectante.
Terceiro, a indiferença ante a morte. Depois de mais de um ano de pandemia, é natural que as pessoas demonstrem fadiga e procurem retomar as ruas rotinas diárias. No entanto, há um risco tremendo em baixar a guarda. Existe a possibilidade concreta de haver uma terceira onda tão letal quanto às anteriores.
A banalização da morte e o relaxamento nos cuidados sanitários podem ter efeitos drásticos. De acordo com as projeções mais recentes do Institute for Health Metrics and Evaluation da Universidade de Washington, nos EUA, há o risco do País enfrentar uma nova alta nos casos já a partir de junho. Essa alta pode ser ainda mais expressiva se uma porção substancial da população deixar de usar máscaras e participar de aglomerações.
Quarto, a incompetência e a negligência de Jair Bolsonaro. O presidente continua a promover aglomerações, faz pouco caso das recomendações científicas e sanitárias. Um estudo de pesquisadores brasileiros mostrou que a taxa de infecção e de mortes nos municípios onde o presidente Bolsonaro venceu as eleições presidenciais no primeiro turno chega a ser sete vezes maior do que nas regiões onde ele foi derrotado.
Enquanto não há doses de vacinas suficientes para acelerar a imunização, não se pode relaxar na prevenção. Não fosse a irresponsabilidade e o descaso do governo, o País poderia estar vivendo hoje dias menos difíceis e milhares de vidas teriam sido salvas. São fatos que a CPI começa a esclarecer.