O voto distrital misto e a cláusula de barreiras são dois fundamentos da necessária reforma política brasileira. Eles fortalecem os partidos, aproximam os candidatos de seus eleitores e exterminam a farra das legendas de aluguel, interessadas no financiamento público e na venda de apoio para quem pagar mais. As propostas de Arthur Lira caminham na direção contrária da formação de um Legislativo focado na construção de consenso em torno nas reformas que realmente importam ao País.
Mal assumiu a cadeira, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), já disse a que veio. Ao lado de seus aliados do Centrão, o bloco de partidos dá sustentação política a Jair Bolsonaro, Lira movimenta-se para emplacar duas mudanças que significarão retrocesso no sistema eleitoral. Sem falar na tentativa de aprovar a PEC da Impunidade, que amplia a imunidade parlamentar e dificulta a condenação e prisão de congressistas. A votação foi abortada por ora, mas o projeto continuará tramitando na surdina.
Lira criou duas comissões para analisar propostas de reforma eleitoral. A primeira grande alteração seria o fim do voto proporcional na escolha dos deputados, como é hoje, para dar lugar ao chamado “distritão”. Seria um golpe contra a representatividade política. Além disso, Lira articula a flexibilização da cláusula de barreira. Seria um golpe contra as regras que dificultam o acesso ao Congresso de partidos nanicos e das legendas de aluguel.
Distritão
No atual sistema proporcional, nem sempre são eleitos os deputados mais votados. Isso porque as regras levam em conta a proporção de votos obtidos pelo partido. Essa regra tem o objetivo de fortalecer os partidos e reunir os candidatos em torno de um programa político. Há problemas na legislação vigentes, como o uso espúrio de puxadores de voto – o “efeito Tiririca” – e o custo elevado das campanhas. O modelo precisa ser reformado, mas o distritão não é o caminho. É a anti-reforma.
No distritão, são eleitos os candidatos com o maior número de votos. Simples assim. Porém, como afirma o cientista político Jairo Nicolau, o fato de ser um sistema simples não significa que ele seja bom. Haveria um enorme incentivo para candidaturas populistas, individualistas e apartadas de qualquer vinculação a um programa político.
Figuras populares, como celebridades e pastores midiáticos, ganhariam ainda mais espaço nas urnas. Os partidos – e, como consequência, a própria democracia brasileira – seriam solapados. Sairiam perdendo os candidatos próximos às comunidades e aqueles representantes das minorias.
Os eleitores ficariam ainda mais apartados das legendas e os candidatos, dos eleitores. Hoje, se nosso candidato não é eleito, pelo menos ajudamos, como nosso voto, a eleger alguém da mesma legenda. No distritão, esse voto vai para o lixo. O distritão vai contra os princípios básicos da representatividade eleitoral e da pluralidade democrática.
Voto distrital misto
Uma reforma eleitoral deveria fortalecer os partidos, aproximar os candidatos dos eleitores e enfraquecer o poder financeiro dos políticos. Nesse sentido, o melhor caminho é a aprovação do voto distrital misto. É o que propõe o Projeto de Lei 9.212/2017, de autoria do senador José Serra (PSDB-SP), e o PL 345/2017, de autoria de Eunício de Oliveira. Ambos foram aprovados, em votação conjunta, em novembro de 2017, mas desde então permanecem parados na Câmara.
As regras valem para a escolha de vereadores, deputados estaduais, deputados federais e distritais. De acordo com as propostas, o eleitor votará em dois candidatos: um de seu distrito eleitoral e outro do partido de sua escolha.
A similaridade dos nomes pode enganar os incautos, mas o distritão não tem absolutamente nenhuma relação com o voto distrital. O voto distrital e a proporcionalidade são as regras usadas pela absoluta maioria das democracias mais sólidas e avançadas. O distritão é uma invenção de caciques retrógrados para favorecer caciques retrógrados.
Cláusula de barreira
Em outra tacada, o Centrão trama o fim da cláusula de barreira. Pela cláusula de desempenho, aprovada em 2017, apenas terão assento no Legislativo as legendas que obtenham ao menos 2% dos votos totais em pelo menos nove estados ou que consigam eleger ao menos 11 deputados distribuídos em nove estados.
O percentual mínimo de votos é necessário também para ter acesso ao Fundo Partidário e ao Fundo Eleitoral. Ou seja, limita-se a farra de abrir partidos nanicos e legendas de aluguel interessadas apenas em obter o financiamento público e vender apoio para quem estiver disposto a pagar mais.
As regras devem começar a mostrar resultados a partir das próximas eleições. Hoje, há mais de 20 legendas com representantes na Câmara, uma anomalia na comparação com outros países. Transforma o Congresso num balcão de votos, no qual reinam os interesses miúdos e não se viabiliza a construção dos consensos em torno nas reformas que realmente importam.
Se a regra em vigor for mantida, a fragmentação tende a ser reduzida, porque a legislação prevê um endurecimento nas cláusulas nas próximas eleições, até atingir o percentual mínimo exigido de 3% em 2030. Alguns partidos terão que se fundir para sobreviver, e isso será ótimo, porque incentiva o diálogo em torno de causas comuns.
A anti-reforma de Lira
Arthur Lira, à luz do dia, vende seu apoio às reformas econômicas. Que assim seja. Que ele batalhe pela aprovação dos ajustes, como a PEC Emergencial, cuja votação deve ocorrer nesta semana na Câmara. Mas, na penumbra, Lira articula pela aprovação de medidas que vão contra o aperfeiçoamento do sistema eleitoral e contra os instrumentos de combate à corrupção. É um perigo que precisa ser acompanhado de perto, porque, se houver descuido da sociedade civil, poderá haver retrocesso no pouco de positivo que ocorreu nesse campo nos últimos anos.
A boa reforma eleitoral significa a aprovação do voto distrital misto. As cláusulas de barreira não devem ser enfraquecidas. E a PEC da Impunidade não pode, de maneira alguma, prosperar.