O texto da Lei da Liberdade Econômica apresentado na Câmara promete muito, entrega pouco e vai gerar muitos questionamentos por conta do alto grau de insegurança jurídica.
O cineasta Bruno Barreto disse certa vez que a maior diferença entre trabalhar em Hollywood e aqui é o fato de que no Brasil as pessoas só identificam “o gênio e o idiota”, enquanto nos Estados Unidos “se valoriza imensamente o sal da terra que existe entre as duas pontas: o profissional.” Essa mesma régua brasileira extremada costuma ser usada pela imprensa tradicional para classificar o resultado de votações no Congresso. Ou elas são vitórias ou derrotas do governo ou da oposição. Ocorre que, muitas vezes, em especial nessa quadra em que o Congresso encara o desafio de votar reformas vitais para a normalização da vida econômica brasileira, as votações finais resultam em avanços que se não configuram uma vitória retumbante da proposta, também não podem ser classificadas de fracasso acachapante. É essa, justamente, a avaliação que o advogado Carlos Ari Sundfeld faz do texto da Lei da Liberdade Econômica, aprovado esta semana na Câmara dos Deputados.
Principal especialista brasileiro no em liberdade econômica, Sundfeld é professor de direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e coordenou por dois anos o grupo de juristas responsável por colocar de pé o projeto aprovado na Câmara dos Deputados. O trabalho do grupo liderado por Sundfeld serviu de base para o governo criar sua versão da legislação, dar-lhe os contornos finais como a Medida Provisória número 881 e levá-la ao crivo dos deputados.
Os conceitos centrais do texto de Sundfeld foram exaltados na batalha legislativa para passar a nova legislação. Essa foi a vitória. E derrota? Ela foi, aos olhos de Sundfeld, a diluição dos conceitos centrais em prescrições legais fluídas e passíveis de contestação. Em sua versão original a MP 881 visava modernizar o Estado, diminuir os excessos fiscalizatórios do governo, estimulando, assim, o investimento e o empreendedorismo. Diz Sundfeld: “Como ficou, a lei funciona como uma declaração de direitos, mas é tecnicamente frágil e mal redigida. Da maneira que ficou, a lei vai gerar muitos questionamentos, produzindo um alto grau de insegurança jurídica.”
Na entrevista que segue, Sundfeld analisa os pontos positivos e negativos do projeto e aponta a necessidade de implementar uma lei de governança para melhorar a administração pública, algo que, por enquanto, o governo descarta.
Os pontos positivos e negativos da Lei de Liberdade Econômica
VIRTÙ: Como o senhor avalia o projeto de lei apresentado agora?
É positivo, no sentido em que diversos jabutis e distorções que estavam presentes foram retirados. Houve uma limpeza e ficou algo bem mais enxuto. Isso foi uma vitória, claro. Só que o problema é que quando você junta um monte de lixo, o fato de você tirar 70% do lixo não faz com que os 30% restantes deixem de ser lixo. Aí, é preciso melhorar esses 30% que restam. Esse é o desafio.
VIRTÙ: Há chances de melhorar nas próximas etapas, durante a fase de destaques? Ou no Senado, não?
Pelo jeito como se deu a votação e pelo discurso, a impressão é de que há um acordo muito forte para manter desse jeito. O foco da discussão acabou divergindo para outras questões que pouco tinham a ver com o assunto principal. A parte que entrava no direito do trabalho, por exemplo. Ela não poderia estar ali. Isso é flagrantemente inconstitucional.
VIRTÙ: Quais os outros pontos negativos?
Tenho duas críticas. A primeira diz respeito à estrutura do texto. Da maneira como ele havia sido concebido inicialmente, com várias ressalvas, acabava gerando o efeito contrário do desejado. Durante o percurso na Câmara dos Deputados, o projeto foi sendo ajustado e melhorou. A segunda crítica é o fato de que foram mantidas um série de normas que, na prática, são vazias. Cada uma delas indica que o que está ali ainda deverá ser regulamentado. Isso torna tudo muito genérico, difícil de editar. Acaba não tendo validade nenhuma.
VIRTÙ: Em que pontos da lei isso ocorre?
Vamos pegar um trecho aqui. Diz o seguinte: “são direitos de toda pessoa (…) desenvolver, executar, operar ou comercializar nova modalidade de produtos e serviços quando as normas infralegais se tornarem desatualizadas por força de desenvolvimento tecnológico consolidado internacionalmente nos termos estabelecidos em regulamento que disciplinará os requisitos para aferição da situação concreta e os procedimentos do momento às condições dos efeitos”. Em suma, isso significa que quando um regulamento se tornar desatualizado, o próprio regulamento vai dizer como é que você vai deixar de aplicá-lo. Ou seja, não significa absolutamente nada.
VIRTÙ: Mas depois de aprovada a lei, virá a regulamentação.
Virão mais dúvidas, isso sim. Quem vai editar esse regulamento? É o governo federal? E vai valer para os estados e municípios? E em relação ao Banco Central? E à Anatel? Vai editar um regulamento pra cada um? O texto todo está construído dessa maneira. Trata de princípios nobres e causas simpáticas, como igualdade e isonomia. Coisas com as quais todo mundo concorda. Mas em momento algum ele deixa claro como é que isso vai ser aplicado. Vai gerar bastante insegurança jurídica.
VIRTÙ: A ideia era justamente o oposto, não ? A ideia era gerar uma regra para acabar com a insegurança.
Temos que nos perguntar por que o governo fez uma opção dessas? Vejo duas razões fundamentais. Uma delas é que eles queriam fazer uma coisa apenas simbólica, uma Declaração de Direitos Madison. Algo pra dizer “olha lá, os comunistas têm a declaração de direitos humanos e nós aqui da direita temos a da liberdade econômica”. A outra razão é uma tentativa de dar ao Executivo os poderes de editar a medida por meio de regulamentos depois.
VIRTÙ: Por que fazer isso?
Eles imaginam, no Ministério da Economia, que há uma resistência forte ao liberalismo e à desburocratização nos órgão setoriais e nas agências de controle federais e estaduais. Por isso, entendem que uma norma que dê poder ao regulamento para tratar do assunto vai permitir que eles lutem contra os outros órgãos da administração pública. Esse é o raciocínio. É um instrumento de poder. O problema é que a eficácia disso é muito baixa. A Lei da Inovação, que tinha um texto melhor até, foi exatamente assim. Adiantou? Nada. Depois, surgia sempre um novo problema e a lei precisava ser alterada.
VIRTÙ: Há algo de positivo?
Há sim, claro. O principal foi retirar os jabutis, as questões trabalhistas, coisas que tornariam o texto inconstitucional e poderiam até piorar o grau de liberdade econômica, como aquela história do tabelamento de frete dos caminhoneiros.
VIRTÙ: Só isso?
São louváveis as mudanças no Código Civil que protegem o patrimônio dos investidores em empresas que não deram certo, evitando que o Estado abocanhe o patrimônio da pessoa física. A nova lei diminui um pouco a burocracia interna da administração pública. Agora há um equilíbrio maior no direito contratual. É provável que se reduza o número de recursos do fisco quando autua empresas e pessoas. Mas o principal mesmo acabou não passando.
VIRTÙ: O que era o principal?
No fundo, a grande mudança seria impor ao governo e às administrações públicas o dever de executar melhorias regulatórias constantes por meio de regras de governança. Era essa a essência da nossa proposta. Você tem que ter metas periódicas para a redução de estoques regulatórios. Tem que realizar consulta pública para editar as normas. Tem que tomar decisões baseadas em evidências. Tem que ter uma autoridade observando a aplicação dessa lei e o cumprimento das normas. Tem que ter um programa de avaliação de riscos institucionais. Mas isso eles não aceitaram.
VIRTÙ: Nada disso passou?
Não quiseram ter esse ônus. A lógica é lutar contra as medidas excessivas das agências reguladoras como a Anvisa. Mas não querem fazer um programa mais completo porque acham que vão encontrar muita resistência. Há uma desconfiança muito grande em relação aos servidores, tudo é feito de maneira muito fechada e com desconfiança. Agora é esperar e, quem sabe, tentar o que precisa ser feito mais pra frente.