Alarmantes 100 milhões de brasileiros não possuem acesso a coleta de esgoto.Geninho é o capitão do time que quer mudar esse cenário.
O escritor carioca Millôr Fernandes costumava dizer que o Brasil tem um grande passado pela frente. Não por acaso, estamos discutindo em 2019 um tema que outros países resolveram no século passado ou retrasado: o saneamento básico. Hoje, alarmantes 100 milhões de brasileiros não possuem acesso a coleta de esgoto, segundo estimativas do Instituto Trata Brasil, que também apontam para outros 35 milhões de brasileiros que não possuem acesso a água limpa.
Hoje, o deputado federal Geninho Zuliani (DEM-SP) está escalado como capitão do time que quer mudar esse cenário. Depois de deixar caducar duas medidas provisórias do governo Temer que alteraram a regulação do saneamento no Brasil, o Congresso Nacional se comprometeu a liderar a aprovação de um novo marco regulatório para os serviços de água e esgoto. Geninho, que exerce seu primeiro mandato na Câmara após 8 anos como prefeito de Olímpia (SP), é relator do projeto.
A engenharia política da qual Geninho está encarregado não é das mais simples. Ele precisa transformar 10 projetos distintos – 8 da Câmara, 1 do Senado e 1 do governo. – em um novo marco regulatório do saneamento. Não faltam, em ambas as casas, interesses corporativos dispostos a inviabilizar mudanças reais.
Escalada pelo presidente Rodrigo Maia, colega de partido, Geninho adota um tom pragmático, disposto a aprovar o projeto ‘como e quando tiver voto’. Sua prioridade número um é convencer a maioria do plenário. Apesar disso, o caminho que o relator sugere é bastante promissor, com mudanças na direção de uma maior segurança jurídica para a participação privada no setor.
Em entrevista à Virtù, Geninho nos conta como foi a tramitação do projeto até o momento e o que podemos esperar para o futuro do saneamento no Brasil.
O que esperar para o futuro do saneamento no Brasil
Virtù: Há 10 projetos diferentes para o saneamento. Quais as chances de ter um aprovado?
É preciso juntar todos eles em apenas um. Isso está bem encaminhado. Estou montando um esqueleto com 30 pontos chave para apresentar para as lideranças. Depois, preciso fazer os ajustes necessários. O relatório fica pronto até o final de agosto. O presidente [da Câmara dos Deputados] Rodrigo Maia poderá pautá-lo em setembro. Mas é algo imprevisível. A Câmara é muito dinâmica. O Rodrigo precisa sentir se há clima para colocar em votação.
Virtù: Hoje, há clima para a aprovação?
O clima é favorável. A votação expressiva da reforma da Previdência abriu um grande caminho. O desafio é apresentar um projeto que não radicalize. Não dá para forçar um viés muito liberal para não correr o risco de não passar. Dependendo de como as coisas estiverem, o melhor pode ser esperar um pouco mais. Uns 90 dias, talvez. É melhor passar um projeto bom um pouco mais tarde do que um todo retalhado na pressa. Outra coisa fundamental é acertarmos o compasso com o Senado para evitar novas alterações.
Virtù: O que mais está previsto no relatório?
Todo dia tem uma novidade. A ANA (a Agência Nacional de Águas) vai ser reestruturada para que também possa mexer com saneamento. A abertura de capital das estatais também é um ponto que pode ser incluído. E a questão dos contratos de programa tem que sair, é uma distorção terem colocado isso como está.
Virtù: O que são esses contratos de programa?
São acordos que, na prática, dispensam a licitação para que as prefeituras contratem empresas estatais. Há algumas exceções, mas em geral os efeitos disso são a ausência de planos de investimento para a universalização do saneamento e de fiscalização ao serviço prestado. Há muitos casos em que o acerto é verbal, sem nenhum documento assinado. A estatal emite conta de água, corta de quem não paga, mas não tem nada formalizado com a municipalidade. Na Bahia, 300 cidades vivem essa situação.
Virtù: Isso foi mantido no projeto?
O projeto concebido pelo Tasso [Jereissati, senador que relatou o projeto no Senado] diz que os contratos de programa existentes poderiam continuar vigorando e que as empresas sem contrato teriam até cinco anos para botar tudo no papel. Depois de contratadas, ainda teriam direito à renovação. Isso é uma grande distorção do projeto. Tem que sair. Tem contrato de programa que se encerra em 2071. Com direito a mais uma renovação, a minha geração não vai viver para ver a universalização do saneamento.
Virtù: O saneamento está nas mãos das estatais e a situação é de calamidade. Mas o senhor diz que não dá para ter um viés muito liberal. Qual é a solução?
As estatais são responsáveis por atrasar a universalização. São ineficientes. Mas não dá para fazer um projeto que mande fechar essas empresas amanhã. Temos cerca de 5.500 municípios que devem ter uns 2 mil contratos. Precisamos determinar quais deles são bons. Quero criar um relatório que preserve os bons. Por questões de segurança jurídica, os contratos que são cumpridos não podem ser encerrados.
Virtù: Qual é o destino das estatais?
Há três que abriram capital na Bolsa de Valores. A Sabesp, em São Paulo, a Sanepar, no Paraná, e a Copasa, em Minas Gerais. Elas têm boa gestão, compliance, funcionam bem.
Virtù: A abertura de capital vai entrar no novo marco regulatório?
Quero colocar algo assim no texto. Não precisa obrigar a abrir capital. Basta restringir o financiamento para quem não fizer. Governador que não abrir o capital da empresa de saneamento tem que perder o acesso ao FGTS, BNDES e incentivos. Outra mudança é a extinção do limite de subdelegação. Hoje, só é permitido a uma estatal subdelegar 25% dos serviços a uma empresa privada. A lógica disso era impedir que uma empresa privada se escondesse atrás de uma estatal para pegar um contrato de programa e fugir da licitação. Mas com o final dos contratos de programa, isso deixa de fazer sentido.
Virtù: O que vai mudar na ANA?
A agência vai ter que dobrar de tamanho. As responsabilidades serão maiores. O investidor tem que estar confortável. Já que a gente vai pedir o dinheiro dele, a ANA precisa criar um cenário que dê segurança jurídica. Hoje, a regulação é muito ligada à pessoa física do servidor. Isso tem que ser previsível, não pode ser no achismo.
Virtù: Do que mais o setor precisa?
Primeiro, precisamos de R$ 600 bilhões em investimentos para universalizar o saneamento básico em todo o Brasil. Temos que buscar esse capital. Em segundo lugar, é necessário que exista concorrência. Sem isso, não se chega a lugar nenhum. E em terceiro, regulação. Esse é o tripé que vai salvar o saneamento no país.
Virtù: Quando teremos saneamento básico universal?
O Plano Nacional de Saneamento tem o ano de 2033 como meta. Como está na lei, é o que temos que usar. Talvez seja preciso criar aditivos que ajudem nessa meta.
Virtù: Como colocar esse objetivo em prática?
Os municípios cujos contratos vencerem precisam abrir licitação. Cidades pequenas poderão se unir em blocos. As estatais poderão participar da disputa. Mas o plano precisa ter como premissa o custo total para universalizar o saneamento do lugar até 2033. Imagine que o custo é de R$ 5 bilhões. O contrato pode durar até 30 anos, mas a entrega tem que ser até 2033.
Virtù: Quanto tempo demora para os investimentos começarem a aparecer depois da aprovação do projeto?
O mercado financeiro quer começar a investir amanhã. Mas o tempo do setor público é outro. Depois de aprovar na Câmara, o projeto vai para o Senado, precisa ser aprovado lá e ser enviado para a sanção presidencial. Aí, a ANA vai ter que reorganizar sua estrutura. Contestações virão. Sempre vai ter alguém para dizer que a lei é inconstitucional. É o tipo de situação que gera desconfiança nos investidores. Reuni um grupo de juristas para debater qualquer possibilidade de inconstitucionalidade e deixar o projeto limpo. Além disso, o Brasil não tem empresas privadas de saneamento. Elas precisam ser criadas.
Virtù: É um longo caminho pela frente.
Esse projeto é comparável a outros grandes, como a privatização das telecomunicações e do setor elétrico. Houve problemas no caminho? Vários. Ninguém está feliz com o serviço das operadoras. Deveríamos ter 5G e temos 3G. Mas todo mundo tem serviço. Ele só precisa melhorar. O mesmo vale para a eletrificação. Hoje, 99% dos brasileiros têm acesso a energia elétrica. Em alguns estados, as privatizações foram malsucedidas. Mas esses contratos já estão vencendo e serão substituídos por outros. O saneamento deveria ter passado por isso há mais de uma década. Mas não aconteceu e hoje temos 100 milhões de pessoas sem coleta de esgoto e 35 milhões sem água tratada. Como afirmou o Tasso, o jovem da periferia tem um tablet na mão e os pés no esgoto. Daqui a 10 anos quero ver outra realidade. Não vai ser de um dia pro outro, mas a mudança tem que começar.