Impuseram-se os mandamentos da economia real nas relações internacionais de Bolsonaro.
O cientista político Hussein Kalout integrou o governo de Michel Temer como Secretário de Assuntos Estratégicos. Crítico da abordagem ideológica nas relações internacionais, o pesquisador de Relações Internacionais da Universidade de Harvard afirma que por vezes a diplomacia do governo comete equívocos ao tentar agradar a uma base eleitoral de direita. “A retórica acaba não sobrevivendo ao peso da realidade”, defende.
Em entrevista exclusiva ao Virtù News, o especialista em política externa repercutiu a recente visita de Jair Bolsonaro aos países asiáticos e ao Oriente Médio e advertiu contra o vácuo de poder deixado na América Latina por conta do isolamento ideológico. “O Brasil só vai se isolar se optar por se isolar, é um grave equívoco olhar para as relações entre países pela ótica de direita e esquerda”, asseverou.
Os principais trechos da conversa estão a seguir:
Como caminha a política externa brasileira
Virtù: Como avalia que vai o governo, que avaliação faz das alianças estratégicas – ou talvez fosse mais adequado dizer, rompimentos estratégicos?
Olho a política externa sob a perspectiva de Estado e do interesse nacional, não de direita ou esquerda. Temos que ver quais são os interesses estratégicos nos variados tabuleiros internacionais. Entendo hoje que há movimentos táticos pontuais que não propõem uma grande estratégia de política externa.
Entendo que o que nós temos são mais movimentos táticos pontuais. Obviamente que se alinhar aos Estados Unidos é desejável, mas é importante entender que um país das dimensões do Brasil, da força gravitacional que o país tem, não tem por que e nem como se alinhar automaticamente a ninguém. Isso é importante.
Evidentemente que o diálogo com a China representa uma equação vital. Não há como prescindir. Mas há pontos anacrônicos. Na América do Sul a bússola da política externa não se encontrou, o Brasil no relacionamento com os Estados que compõem o mapa geográfico, tentou se imiscuir e foi insensível, os países se valem do mesmo argumento que nós, como é que você vai opinar sobre a decisão da Argentina, do Uruguai, etc…
Vurtù: E agora parece que precisa voltar atrás nas declarações que fez sobre a China?
Discurso de campanha é discurso de campanha, atrocidades são cometidas. Em matéria de política externa atrocidades são ditas nas campanhas. A maioria não conhece a complexidade pela qual opera a política externa brasileira.
Acho que mudou o discurso mesmo. Há coisas que se impõem, a economia real se impõe. As perdas que o Brasil teria seriam gravíssimas, impactariam na nossa renda, no emprego, no crédito. Comprometeria o nosso desenvolvimento.
A retórica acaba não sobrevivendo ao peso da realidade. E da mesma forma foi com os países árabes, a tensão inicial da mudança da embaixada brasileira para Jerusalém acabou esbarrando no fato real, tem um arcabouço de parceiros comerciais que são investidores da ordem de 25 bilhões de dólares, não tem como abrir mão porque o setor empresarial vai reclamar. Não tem que escolher, foi acertada a decisão de maximizar para os dois lados.
Este equilíbrio deve prevalecer na América do Sul, Estados Unidos e Europa. O Brasil não precisa se distanciar de Israel para se aproximar dos árabes, você pode ganhar para os dois lados.
Virtù: Você atribui a busca do equilíbrio da política externa à pauta agrícola?
Sem dúvida. São dois componentes fundamentais, os dois mercados, o do Oriente Médio e o chinês. Prevaleceu o realismo. Não há como romper com eles.
Os empresários reclamariam. O governo precisou reestudar sua engenharia diplomático para lidar com um problema que afetava o dia-a-dia do empresário e que afetava resultados. Pragmatismo e flexibilidade tática para saber operar com atores fundamentais para o seu projeto de desenvolvimento econômico.
Virtù: Como vê esta emergência de uma nova esquerda na América Latina, com Fernández na Argentina, e como ela tem impacto no nosso papel de liderança?
É importante tratar a matéria com realismo. O Brasil só vai se isolar se optar por se isolar, é um grave equívoco olhar para as relações entre países pela ótica de direita e esquerda. É um conceito ultrapassado. Na Argentina ganhou o peronismo, é o terceiro país que mais compra do Brasil, vai deixar esta parceria? Pela mesma analogia não deveríamos ir para a China e deveríamos romper com alguns países europeus. As coisas não são segmentadas assim.
É necessário admitir que o governo Macri fracassou, os índices sociais na Argentina se deterioraram, o voto em Fernández tem algo de protesto. Mas ele é um pouco mais pragmático, ou me parece que seja, o que me parece um bom sinal. O Obrador está preocupado com a economia mexicana, esta ideia de bloco de esquerda tem pouca consistência, coalizão por ideias e princípios não resolve os problemas da população.
Gostaria de enfatizar que o presidente tem uma base eleitoral volúvel. Ele quer fidelizar a base. A população brasileira não conhece os matizes, é uma matéria sofisticada. Tenta-se usar a política externa para fidelizar. Não encontra amparo na realidade falar que o Brasil está ameaçado pelo socialismo. O que é importante decodificar é a metodologia.
Há uma preocupação no entorno estratégico do presidente em converter qualquer ação externa em algo que tenha ressonância ideológica e muitas vezes se comete erros diplomáticos. A diplomacia tem uma gramática própria e assim você pode atropelar.
Virtù: O governo tem comemorado resultados da viagem pela Ásia e o Oriente Médio, tem mesmo o que comemorar ou é só uma fumaça?
A visita à Ásia tinha a parada no Japão, que era a coroação do imperador. Na China era necessário quebrar o gelo. A visita ao Oriente Médio era importante, mas foi sobrevalorizada. Os 10 bilhões de dólares anunciados serão investidos em que, quando, aonde, qual o impacto? O que o Brasil tem é uma promessa. Acho que precisaria explicar mais a miúdo em que o investimento irá. De forma geral, a agenda em si poderia ser um pouco mais substantiva.
O ponto máximo da agenda foi a base industrial de defesa, apresentar os produtos que nós temos, é um mercado competitivo e nossos rivais são europeus e americanos. A agenda precisava ser mais robusta, que fosse mais além da temática de defesa, que é importante, mas precisava ir além, trabalhar nos investimentos em infraestrutura, então a promessa dos 10 bilhões, ela é importante, mas precisa ser explicada em quê.
Virtù: Como você vê a aproximação de Bolsonaro com Trump e isso com a perspectiva da reeleição do americano?
A relação precisa ser Brasil e EUA, não Trump e Bolsonaro. Claro que a relação entre dois chefes de Estado pode ser usada para melhorar a relação, mas se ganha um candidato rival é claro que o Brasil sairá da primeira página para ir a uma página periférica.
É um risco sedimentar a relação sobre este prisma. Tem que olhar para a relação de longo prazo, não é uma relação de curto prazo. Este é um equívoco que não mereceu a devida atenção e o devido cuidado. As promessas que foram feitas pelo relacionamento não se traduziram em realidade. Qualquer concessão precisa ser equilibrada.
A relação com os EUA é vital, a parceria precisa ser levada a sério, mas precisa se ter o cuidado de levar em conta o interesse nacional. Precisa haver esta clareza. É importante manter sobriedade e equilíbrio. Há um vácuo de poder na América Latina e nunca é bom deixar isso aberto, você deixa espaço para outros entrarem.