“É a política, estúpido.” Especialista na relação entre os mercados e a política, Volpon é um economista conhecido pelo olhar aguçado que mantém sobre o tabuleiro geopolítico.
Em 1992, os eleitores americanos foram às urnas com o país mergulhado em uma recessão. James Carville, o estrategista político do candidato democrata Bill Clinton, percebendo do que se tratava aquela disputa, escreveu em uma lousa branca, no quartel-general da campanha, o mote que conduziria Clinton à vitória sobre o presidente republicano George H. W. Bush: “É a economia, estúpido.”
A frase captou o sentimento que definiria os rumos das campanhas presidenciais nos Estados Unidos e no mundo no decorrer das décadas seguintes. Se a economia estava bem, candidaturas que representavam continuidade tinham mais chances. Se estava mal, a maioria dos eleitores se inclinava a votar pela mudança.
Mas os tempos agora são outros. Hoje, para traduzir a instabilidade das finanças globais, economistas do mundo inteiro podem se valer de uma variação atualizada daquele bordão. Ou seja, agora “É a política, estúpido.” O economista-chefe do banco suíço UBS no Brasil, Tony Volpon, é um desses economistas sensíveis ao momento político. “Uma das características dos últimos anos nos países desenvolvidos tem sido a crescente interferência de fatores políticos em questões que pareciam estar pacificadas, como o sistema internacional de comércio”, afirma. Especialista na relação entre os mercados e a política, Volpon é conhecido pelo olhar aguçado que mantém sobre o tabuleiro geopolítico.
Em 2014, na chefia do departamento de pesquisa para mercados emergentes do banco Nomura, o economista cunhou o termo “pragmatismo sob coação”, para descrever como Dilma Rousseff seria induzida pelo mercado a adotar políticas ortodoxas. A previsão se concretizou e ele foi convidado, no ano seguinte, a assumir a área internacional do Banco Central, onde permaneceu por dois anos.
A vasta experiência profissional culminou no recém-lançado “Pragmatismo Sob Coação: Petismo e Economia em um Mundo de Crises”, uma análise sobre os sucessos e fracassos da economia brasileira e da conjuntura global nas últimas duas décadas. As lições tiradas daquele período são fundamentais para entender como o país pode voltar a crescer, mesmo em um cenário tão desafiador.
Os sucessos e fracassos da economia brasileira e da conjuntura global nas últimas duas décadas
VIRTÙ: Em 1992, James Carville, estrategista de Bill Clinton, tornou famoso o bordão “é a economia, estúpido”. Para os economistas, é possível dizer que o que explica o cenário incerto da economia global “é a política, estúpido”?
Sim, uma das características dos últimos anos nos países desenvolvidos é a crescente importância de fatores políticos interferindo em questões que pareciam estar pacificadas, como o sistema internacional de comércio. Não faz muito tempo, pensávamos que o que diferenciava um país emergente de um plenamente desenvolvido era a estabilidade institucional. O que vemos hoje – basta pensar no Brexit inglês – é a crescente instabilidade institucional nos países desenvolvidos. De certa forma, eles estão agindo como se fossem países emergentes. Hoje em dia essa diferenciação está ficando cada vez mais difícil.
VIRTÙ: Se os desenvolvidos estão cada vez mais parecidos com os emergentes, para onde irão os emergentes?
Uma visão otimista deste processo seria a de que haveria um “encontro” no meio, apagando a distinção entre emergentes e desenvolvidos. Compartilho deste possível otimismo em partes. Para alguns países emergentes, é possível notar discreta, mas contínua melhora institucional. Incluo o Brasil neste grupo. Assim, devemos ficar mais parecidos com países desenvolvidos, adotando suas melhores práticas. Estou menos otimista em fechar a grande diferença de renda per capita desses dois grupos. Os países da América Latina, em geral, com possível exceção do Chile, parecem estar atolados na “armadilha da renda média” e, apesar de melhoras institucionais em alguns países, não vejo esse hiato fechando nas próximas décadas.
VIRTÙ: O senhor atuou no Banco Central durante uma das piores crises brasileiras, da qual ainda estamos tentando sair. Como foi essa experiência?
Intelectualmente, foi fascinante. Estava em uma posição privilegiada na intercessão da crise brasileira e a crise que a China enfrentou entre 2014 e 2015, como diretor da Área Internacional. Agora, pessoalmente, o peso da responsabilidade me deixou muitas noites em claro.
VIRTÙ: Qual caso, em específico, tirou seu sono?
Por regras de sigilo, não posso divulgar muitos detalhes. Isso dito, nos piores momentos da crise chinesa de 2015, nos meses de agosto e setembro, cheguei a pensar que o governo chinês não ia conseguir reverter a saída de capitais que eles estavam enfrentando, o que deflagraria uma crise cambial e geraria potencialmente uma crise global de igual intensidade a de 2008. Essa perspectiva me tirou o sono por muitas noites.
VIRTÙ: Quais as diferenças entre atuar no setor privado e no público?
No setor público, suas decisões podem ter um efeito mais difuso, mas podem impactar a vida de milhares de pessoas. Quando estava no BC, continuamente me questionava se estávamos certos em seguir uma política de alta de juros durante a pior recessão da história. Discuto isso bastante no livro.
VIRTÙ: Em 2008, o ex-presidente Lula chamou a crise de marolinha e fomos engolidos por uma crise alguns anos depois. Agora, o ministro da Economia, Paulo Guedes, disse que o país não tem porque temer a desaceleração econômica no mundo. Há comparação entre o que se vive hoje na economia brasileira e o que se viveu antes?
Em 2008, o que vimos foi o fim de um modelo de crescimento global baseado na provisão de poupança pela China – e outros países emergentes – aos países desenvolvidos via acumulação de reservas. Isso acabou alimentando uma enorme e insustentável bolha imobiliária e de crédito, o complemento necessário de demanda a nova oferta de bens saindo da Ásia. A Grande Crise Financeira foi o estouro dessas bolhas. No Brasil, saímos mais ou menos ilesos em 2008 não tanto pela reação da política econômica da época, mas pelo forte pacote de estímulo desencadeado pela China na eclosão da crise que elevou para as alturas os preços das commodities. Isso levou ao milagroso ano de 2010, quando crescemos com taxas somente vistas na época do Milagre Econômico. Esse surto de crescimento combinado com a descoberta do pré-sal, parecia prometer uma nova era de prosperidade. Mas 2010 não foi um novo começo. Foi, sim, o fim da era Lula na economia.
VIRTÙ: E hoje?
Vemos uma desaceleração global fruto de vários fatores. O principal é a guerra comercial China-Estados Unidos, que já dura quase dois anos. Assim, enquanto em 2008 vimos um choque agudo e estouro de várias bolhas, agora estamos vendo algo mais lento e duradouro, especialmente dado que a guerra comercial é somente uma dimensão de uma concorrência geopolítica entre superpotências, que deve durar por muitos anos e será o grande tema das próximas décadas.
VIRTÙ: O que mudou entre Estados Unidos e China daquela época para cá?
Durante o período de maior dinamismo econômico chinês, os Estados Unidos não viam a China como rival. De fato, eles foram grandes apoiadores da China desde a abertura diplomática promovida por Richard Nixon nos anos 70. Sem forte apoio americano, a China não teria entrado na OMC (Organização Mundial do Comércio), por exemplo. Somente quando a dinamismo econômico chinês perdeu força, depois da Grande Crise Financeira, os Estados Unidos começaram a enxergá-la como rival geopolítico. Isso foi, em parte, devido à postura mais assertiva e nacionalista adotada por Xi Jiping. Ele adotou essa postura para parcialmente compensar a perda de dinamismo econômico, apelando para o forte sentido nacionalista do povo chinês. Algo diferente dessa rivalidade é que ela ocorre entre duas economias extremamente entrelaçadas. Esse não foi o caso na disputa entre os Estados Unidos e a União Soviética. É por isso que as consequências econômicas serão profundas e duradouras.
VIRTÙ: Existe algo como uma política econômica petista?
Sim. A política petista de fato enfatiza distribuição direta de renda, o que em um país como o Brasil não é nada mal. O problema é que essa é uma política que não criou uma lógica de como fazer isso em períodos de menor exuberância econômica, nem em como gerenciar os custos negativos dessa maior distribuição versus seus efeitos benéficos. Claramente houve uma política de superaquecimento do mercado de trabalho que elevou a inflação. Assim, quando o boom global desemboca na Grande Crise Financeira, o petismo não soube se ajustar. Dobrou a aposta em um tipo de intervencionismo econômico e expansão fiscal que nos levou à Grande Recessão.
VIRTÙ: As lições aprendidas com os erros cometidos por governos do PT estão sendo postas em prática pelo governo Bolsonaro?
Estamos fazendo uma transição forçada de um modelo econômico com foco no Estado para um com foco no mercado, em função da crise fiscal que não mais permite o mesmo nível de apoio do Estado. Assim não é tanto uma questão de “lição aprendida”, mas de necessidade. Esse era exatamente meu ponto quando cunhei a expressão “pragmatismo sob coação”, para dizer que a própria Dilma, que tinha travado a campanha de reeleição defendendo as políticas do seu primeiro mandato, ia reconhecer a necessidade de fazer o ajuste. Tanto o governo Temer como o Bolsonaro são continuidades desse processo.
VIRTÙ: O que é o “pragmatismo sob coação”?
Em 2014, escrevi um relatório depois da reeleição da Dilma Rousseff, antes da nomeação de Joaquim Levy como ministro da Fazenda, onde argumentei que, a despeito da retórica usada na campanha, a presidente Dilma demonstraria pragmatismo na economia como consequência da forte deterioração econômica durante seu primeiro mandato. Fui acusado por parte da esquerda de “terrorismo econômico”. Uso este episódio para discutir a relação entre os mercados e a política, e fazer uma comparação entre os governos Lula e Dilma. Uma conclusão a que chego é que a relação entre mercado e política nem sempre é benéfica. Seria melhor se não houvesse. Mas isso só acontece se o Estado tem uma posição fiscal sustentável onde não há brecha para pressão do mercado. Quem reclama do “terrorismo econômico” deveria ser a favor do ajuste fiscal.
VIRTÙ: No livro, o senhor analisa os acontecimentos econômicos e financeiros que culminaram com crise de 2008. Por que suas consequências tardaram tanto a chegar no Brasil?
De fato não tardaram, mas somente conseguimos entender isso bem depois. A frustração com o crescimento econômico no Brasil começa junto com a gradual desaceleração chinesa, já em 2011. Foi essa frustração que leva o governo Dilma a adotar o conjunto de políticas hoje conhecidas como “nova matriz econômica”, uma tentativa fracassada de elevar o crescimento via um modelo de intervenção estatal e farto crédito público. A incapacidade dessas políticas de compensar a desaceleração da China nos leva à crise fiscal que se inicia em 2013-2014 e que ainda enfrentamos até hoje.
VIRTÙ: Por que essa política de estímulo e expansão do consumo, em um contexto de crise global, foi equivocada?
Não foi inadequada como reação emergencial à crise. Mas como algo mais duradouro, fracassou. Nosso crescimento pré-crise estava lastreado em um modelo global que, no entanto, havia se esgotado. Não se tinha essa noção e muitos achavam que o governo Lula tinha inventado um novo modelo econômico. Em 2010, quase todos se enganaram.
VIRTÙ: Por que, até agora, nenhuma nação conseguiu retornar aos mesmos níveis de crescimento anteriores à crise?
Por dois conjuntos de motivos. Primeiro, o desmonte de um modelo mutualmente benéfico, mas insustentável, de como a China se inseriu na economia global financiando o consumo de países ricos. Depois da crise o que vemos são tentativas “paroquiais” de colocar algo no lugar desse sistema. A China apela a um grande programa de investimentos em infraestrutura e no setor imobiliário. Os Estados Unidos adotam o quantitative easing pelo FED (Federal Reserve). No Brasil, temos um tipo de credit easing por parte dos bancos públicos. Todas essas medidas têm algum efeito positivo de curto prazo, mas nada que se compare ao sistema pré-crise, funcionou muito bem durante um tempo, mas se mostrou insustentável. O segundo conjunto de motivos são os fatores como o envelhecimento da população, que são denominados de “estagnação secular”. Eles são menos relevantes para os países emergentes, mas bastante relevantes, especialmente para a Europa e o Japão.
VIRTÙ: De que maneira o investimento em infraestrutura pode atenuar ou até mesmo prevenir o agravamento de crises financeiras? É esse o caminho para a economia brasileira se recuperar?
Tínhamos um modelo de crescimento calcado fortemente no consumo, impulsionado no que eu chamo no livro de “efeito riqueza”. Hoje, estamos vivendo um ambiente com a menor taxa de juros da nossa história, uma vitória do Banco Central, que, a despeito da recessão, elevou a Selic para 14,25%, ajudando a aniquilar a inflação. A questão, agora, é criar um ambiente regulatório, legal e político para canalizar recursos para esses investimentos que finalmente vão oferecer maiores taxas de retorno que a renda fixa atrelada à dívida pública.
VIRTÙ: A adoção de medidas heterodoxas costuma vir acompanhada de uma retórica de “proteção da população mais vulnerável”. Contudo, uma das conclusões de seu livro é justamente a de que algumas dessas medidas privilegiam os mais ricos e pioram a vida dos mais pobres. Como é isso?
Nos Estados Unidos e na Europa houve um aperto fiscal precoce quando essas economias estavam saindo da parte mais aguda da crise. Isso levou seus bancos centrais a tentar compensar esse aperto com essas medidas heterodoxas que tinham como seu principal canal um impacto positivo sobre os mercados financeiros. Mas quem detém investimentos nos mercados é a parcela mais rica da população, a que sofreu os menores danos durante a crise. Assim essa hipertrofia da política monetária acabou piorando a concentração de renda, o que acaba contribuindo para o apelo dos políticos e partidos populistas.
VIRTÙ: O populismo político que floresceu nos últimos anos é consequência direta desse tipo de medida ou há outros fatores envolvidos?
Outro grande fator tem a ver com a imigração, que junto com a crescente concentração de renda e medo de mudanças sociais, cria o fenômeno de áreas fora das grandes metrópoles que se sentem excluídas e abandonadas por suas elites. Discuto no livro como antes da crise nos Estados Unidos vimos uma estagnação de renda, mas um aumento grande da oferta de crédito que compensava essa estagnação e turbinava o consumo. Com a crise, essa “sobreoferta” de crédito acabou e o trabalhador americano passou a conviver com a realidade da estagnação da renda.