Às vésperas do leilão do maior projeto de infraestrutura do País, a série de regulamentações vitais para o funcionamento do Novo Marco do Saneamento ainda não foi apresentada pelo governo. O assunto deve ser tratado com a urgência que ele merece. Estão em jogo a saúde de metade da população, em meio à uma crise pandêmica, bilhões em investimentos e milhões de empregos.
O leilão de concessão à iniciativa privada da Cedae, a empresa pública estadual de água e saneamento do Rio de Janeiro, está marcado para o dia 30 de abril. A disputa promete ser acirrada. Todas as grandes empresas privadas de saneamento deverão participar, além de fundos de investimentos e grupos internacionais. O número de interessados já chega a 15. O governo do estado vai colocar em oferta a administração dos serviços em 35 cidades. Serão leiloados quatro blocos de contratos. Os investimentos a serem realizados pelos novos administradores são da ordem de R$ 40 bilhões. Trata-se do maior projeto do País na área de infraestrutura.
Graças à aprovação do novo marco legal do saneamento básico (Lei 14.026/2020) começam finalmente a ser destravados os investimentos privados no setor mais atrasado da infraestrutura brasileira, como o do Rio. Mas existe um risco: embora aprovada em agosto, o pleno funcionamento da lei depende de uma série de regulamentações que não foram apresentadas pelo governo.
O governo havia prometido editar três decretos com as regulamentações ainda em setembro, mas, até agora, nada. Além disso, os vetos do presidente Jair Bolsonaro a alguns pontos do texto final precisam ser analisados pelo Congresso. São pendências que se arrastam desde o ano passado, em meio às disputas pelas eleições na Câmara e no Senado. Enquanto esses pontos não forem superados continuarão a existir focos de possíveis questionamentos e disputas judiciais cujo resultado será lançar incertezas sobre um dos mais promissores setores da economia nos próximos anos. Sem segurança jurídica, os investidores não vão aportar capital nos projetos de saneamento.
Praticamente metade da população vive em residências que não estão ligadas à rede de coleta de esgoto, e mais de 30 milhões de pessoas não possuem água tratada em casa. Serão necessários investimentos ao redor de R$ 750 bilhões, de acordo com um estudo feito pela consultoria KPMG sob encomenda da Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon). A estimativa é de criação de 14 milhões de empregos.
Todo esse potencial poderá ir para o ralo caso a regulamentação não avance. Como demonstram o interesse dos investidores pela Cedae e por outras concessões realizadas recentemente, o novo marco poderá contribuir decisivamente para sanar um problema que se arrasta há décadas em decorrência da ineficiência das companhias públicas. Mas são essas estatais – e os políticos ligados a elas – que pretendem tumultuar a implementação do novo marco, porque temem perder privilégios ante a concorrência privada.
As novas regras permitem modelos variados de administração dos serviços de saneamento. Podem ser feitas privatizações, concessões ou parcerias público-privadas. Não há impeditivos para que as companhias públicas continuem a operar. O importante é que o marco incentiva a competição e traz metas definidas para universalizar os serviços de água e esgoto em todo o território nacional até 2033.
As empresas, estatais ou privadas, terão de cumprir as metas estabelecidas nos contratos, senão ficarão sujeitas a penalidades. Terão também que demonstrar capacidade financeira e operacional para comandar os projetos – evitando, assim, o risco de oportunistas ganharem uma concessão e não conseguirem concluir as obras previstas no prazo adequado.
O que está em jogo
Os decretos que estão nas mãos do governo vão definir os indicadores técnicos, econômicos e financeiros. Depois de apresentados esses critérios, haverá um prazo para a regulamentação e a adequação tanto das empresas, quanto do setor público e da Agência Nacional das Águas (ANA), a agência reguladora para o setor.
Oportunisticamente, as empresas estatais e alguns congressistas defendem uma prorrogação para o início efetivo do novo marco. Argumentam que não haverá tempo suficiente para colocar em prática as novas regulamentações até março de 2022, o prazo previsto na nova lei. A movimentação nos bastidores é por forçar a um adiamento das metas, por exemplo. O governo, contudo, argumenta que o prazo é mais do que suficiente.
O ideal é apagar o fogo enquanto o incêndio ainda não tenha se alastrado. Quanto mais o governo adia a entrega dos decretos, mais brechas serão criadas para desvirtuar a lei. O mesmo pode ser dito em relação à demora do Congresso em apreciar os vetos.
Grande potencial
A recente concessão dos serviços de água e esgoto nas 13 cidades da região metropolitana de Maceió mostra o potencial do novo marco do saneamento para atrair capital privado. Foi o primeiro leilão depois da aprovação do novo marco regulatório. A BRK Ambiental levou o contrato ao oferecer R$ 2 bilhões pela outorga. A nova administradora deverá realizar obras para universalizar o acesso à água tratada e esgoto, além de cumprir metas de redução no desperdício de água. Estão previstos investimentos de R$ 2,6 bilhões na expansão da rede e na melhoria dos serviços. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) colaborou na estruturação do processo de licitação. Agora, em uma nova fase, a concessão deverá ser ampliada para 88 municípios de Alagoas, beneficiando 2,2 milhões de pessoas.
Logo na sequência de Alagoas, ocorreu um leilão de saneamento em Cariacica, no Espírito Santo. Nesse caso foi uma parceria público-privada, modelo também previsto no novo marco. Assim como em Alagoas houve bastante disputa entre as empresas interessadas no negócio. A vencedora foi a Aegea, que terá de investir R$ 580 milhões na melhoria dos serviços. Até o fim do ano, o BNDES prevê que ocorrerão até sete outros leilões. O leilão da Cedae será o maior. O investimento previsto nesses projetos alcança RS 165 bilhões.
São exemplos enfáticos de que, se houver regras favoráveis e segurança jurídica, não faltarão investidores interessados em aplicar recursos privados no saneamento básico. Parece óbvio, mas é um dos óbvios que o Brasil custou a enxergar, ao preservar, por décadas, as sinecuras das empresas estatais de água e esgoto. Aprovado o novo marco, não cabe retrocesso. O governo precisa editar rapidamente as regulamentações necessárias ao pleno funcionamento das novas regras e o assunto deve ser tratado no Congresso com a urgência que ele merece. Estão em jogo bilhões em investimentos e milhões de empregos.