A aprovação da autonomia do BC assegura a potência da política monetária e pode trazer uma novidade: a responsabilidade de suavizar as flutuações do nível de atividade econômica e promover o emprego.
Artigo de Maílson da Nóbrega | Ex-ministro da Fazenda. Sócio da Tendências Consultoria
A autonomia do Banco Central (BC) é uma ideia que amadureceu no Brasil. Hoje, ela parece contar com expressivo apoio da sociedade. O Senado está prestes a aprovar a lei que confirmará o status de que na prática o BC já gozava. Chegar aqui foi um longo e difícil caminho.
Quase todos os bancos centrais surgiram na primeira metade do século passado. Mais recente é a proposição de sua autonomia. No começo, dado que eles geram receitas de senhoriagem derivada da emissão de moeda, a proposta era evitar ordens dos líderes políticos para emitir dinheiro, provocando surtos inflacionários descontrolados.
Em tempos recentes, a autonomia tem a ver com o efeito retardado da política monetária. Os resultados da expansão da liquidez levam tempo para ser percebidos – algo como nove meses no Brasil. O crescimento do PIB e do emprego chegam antes da inflação. Daí o risco de pressões para que o banco central estimule irresponsavelmente a atividade econômica, sem atentar para suas consequências deletérias.
Seja como for, a necessidade de atribuir autonomia aos bancos centrais se acelerou a partir da última década do século XX. A literatura mostra amplos efeitos benéficos da medida. Mesmo onde vigorava a autonomia informal, caso do Banco da Inglaterra, sua legalização no governo do primeiro-ministro Tony Blair (1997) fez cair as taxas de juros do mercado.
Na América Latina, o Brasil tornou-se um retardatário. Nosso BC surgiu em 1964, décadas depois de Colômbia (1923), Bolívia (1928) e Argentina (1935). Foi o efeito da resistência do Banco do Brasil (BB), que exerceu por mais de quatro décadas as funções de banco central. O processo começou com a lei que criou, em sua estrutura, a Carteira de Redescontos (1921).
O BB assumiu crescentemente funções de autoridade monetária: além do redesconto, o recebimento de depósitos voluntários e compulsórios dos bancos comerciais, a fiscalização bancária e, na prática, a emissão de moeda. Cabia-lhe ainda o monopólio das operações cambiais e a iniciativa de determinar sua própria expansão, pois descontava nele mesmo os seus empréstimos. O BB lutou para barrar o nascimento do BC.
Infelizmente, o arranjo institucional em que se inseriu o BC manteve, a rigor, grande parte dos defeitos anteriores. A relação incestuosa entre o BC, o BB e o Tesouro Nacional consagrava a “conta de movimento”, pela qual o BB se supria de recursos ilimitados no BC, ao passo que este, ao exercer funções de fomento, financiava indiretamente a agricultura, a agroindústria e as exportações, possuindo equipes de análise de projetos à moda do BNDES.
Havia o Orçamento Monetário (OM), para onde fluíam receitas tributárias como as do IOF e receitas oriundas das áreas do café e do açúcar, bem como as despesas de subsídios ao crédito e outros. Os orçamentos da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), do Instituto Brasileiro do Café (IBC) e do Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA) integravam o OM e não o Orçamento da União. Este era executado por departamentos do BC e do BB.
Com base em estudos realizados entre 1983 e 1984, várias reformas puseram fim a esse atraso institucional. Foram extintos a “conta de movimento”, as funções de fomento do BC e o OM (1986-1988). Criou-se a Secretaria do Tesouro Nacional (1986). Os orçamentos foram unificados.
Dedicado exclusivamente a assegurar a estabilidade da moeda e do sistema financeiro, o BC evoluiu. Reformulou seus quadros de pessoal e se preparou para ser autoridade monetária clássica. Enquanto isso, os custos do processo hiperinflacionário propiciaram o fim da leniência da sociedade com a inflação. Virou intolerância. O êxito do Plano Real (1994) consolidou a nova realidade. No mesmo ano, pela primeira vez, a estabilidade dos preços viabilizou a eleição de um presidente da República, a de Fernando Henrique Cardoso.
Novas reformas consolidaram o papel do BC na economia brasileira: a criação do Comitê de Política Monetária (Copom, 1996), bem como os regimes de câmbio flutuante e de metas para a inflação (1998). Surgiu o tripé macroeconômico (metas para a inflação, câmbio flutuante e austeridade fiscal). A institucionalização do processo de decisão sobre a taxa básica do BC (a Selic) foi seguida pela criação do sistema Focus – em que bancos e consultorias informam suas projeções para indicadores macroeconômicos e se reúnem periodicamente com o BC para discutir a conjuntura. A transparência na atuação do BC o habilitou a bem coordenar as expectativas dos agentes econômicos, fundamental para o êxito do regime de metas para a inflação.
Fruto dessas transformações, o BC granjeou prestígio inédito no País e no exterior. A provável aprovação de sua autonomia pode trazer uma novidade: a responsabilidade de suavizar as flutuações do nível de atividade econômica e promover o emprego. Essa atribuição, presente em muitos bancos centrais, já se inseria na atuação do BC. Com a introdução da regra do “balanço de riscos” (2015), o Copom se preocupa tanto em atingir a meta para a inflação quanto em identificar os efeitos da política monetária sobre a atividade econômica e o emprego. A aprovação da autonomia operacional do BC será o coroamento desse longo processo de quase seis décadas – quase uma saga –, a qual assegurou a ampliação da potência da política monetária. Esta, impulsionada pelo teto de gastos (2016), resultou na queda histórica da Selic para o nível atual de 2% com estabilidade de preços. Aqui vamos chegar. É para comemorar.