A marca #nãomerepresenta simboliza uma insatisfação com a democracia representativa que acompanha o planeta desde o fim da Guerra-Fria. Uma sociedade mais diversificada exige um conjunto maior de representantes no Congresso
Artigo de Humberto Dantas
Até o século XIX a fome não era discutida como problema público governamental no mundo por questões de constrangimento e pudores. Decisões tomadas nas altas e pomposas cúpulas políticas ficariam envergonhadas com uma temática tão assustadora. O mundo mudou.
Entramos no século XX com a certeza de que a fome era um problema social, de saúde pública, que deveria ser encarado pelos governos. Restava saber como. Nos anos 30, um grupo de pesquisadores de diferentes áreas enfrentou o primeiro desafio: provar que o mau rendimento do brasileiro não estava associado à raça, como se pensava, mas sim a uma questão de fome. O bordão “o mal é de fome, e não de raça” ganhou força, e o brasileiro passaria a ser visto como sujeito trabalhador potencial, e não como um vira-latas ou um pangaré.
Se reconheço o problema de forma correta, posso resolvê-lo. E os estudos se aprofundaram. “Geografia da Fome”, de Josué de Castro, talvez seja o mais emblemático livro desse período. O autor divide o Brasil em duas partes e diz: vivemos cenários de fomes, no plural; a quantitativa e a quantitativa, e isso pode ser geograficamente alocado no mapa. O Brasil do Norte e do Nordeste vivia mais a fome quantitativa, ou seja, não existia recurso e acesso ao mínimo necessário para um aporte calórico adequado. O Brasil do Centro-Sul vivia a fome qualitativa, ou seja, recursos existiam, mas não havia capacidade de escolhas saudáveis para uma boa alimentação. Resultado: políticas públicas foram constituídas a partir do governo de Vargas para distribuir alimentos, consolidou-se um salário-mínimo com base numa cesta básica, e a alimentação se tornou conteúdo escolar. Pronto: a quantidade e a qualidade foram enfrentadas. Sabemos que muito ainda precisou, e precisa ser feito, mas o problema foi percebido e enfrentado.
Vamos nos servir desse diagnóstico para olharmos para a nossa democracia. E vamos tentar desmistificar a ideia de que temos políticos demais. O problema não é esse. Explico: temos políticos de menos. E posso garantir um argumento razoável se você tiver paciência de me acompanhar – o que é diferente de concordar comigo, é óbvio. Mas debates se geram assim.
Vou usar uma casa parlamentar como exemplo, mas isso certamente servirá para muitas das outras. A Câmara dos Deputados possui 513 deputados federais desde a consolidação do estado de Tocantins e a efetivação dos preceitos constitucionais de 1988. Antes eram menos, lembrando que a eleição de 1986 elegeu pouco menos de 490 parlamentares. Pois bem: desde 1988 o mundo se tornou infinitamente mais complexo, as causas sociais se adensaram, o cipoal de ideias se intensificou e o arrefecimento do engessamento ideológico trazido pela polarização entre esquerda e direita se atomizou em causas que tendem ao infinito – exageros à parte, é isso o que houve. E o total de representantes? Na Câmara dos Deputados é o mesmo. O extrapolar dessa sensação de multiplicidade em crise veio vocalizado pela sociedade com os manifestos de 2013 no Brasil, e diversos países do mundo tiveram instantes semelhantes. A marca #nãomerepresenta ganhou um espaço significativo, passou a simbolizar uma insatisfação evidente com a democracia representativa que vinha acompanhando o planeta desde o fim da Guerra-Fria. E agora?
As soluções estavam associadas a mais participação. Mais? E o tempo para isso? E os mecanismos sólidos para tal? Ideias não faltaram. O Brasil é um celeiro próspero de ações no campo da democracia participativa, mas o amplo conjunto de decisões continua sendo tomado dentro dos parlamentos, e por vezes ignoram as ferramentas participativas de forma absoluta. E agora? Crise política é a resposta encontrada, e “por uma nova política” foi o bordão de tempos recentes, depositando nas candidaturas as esperanças. O que ganhamos com isso? Certamente muita coisa boa, mas também um conjunto imenso de frustrações, decepções e a certeza de que o “novo nem sempre é bom, ou se apresenta absolutamente despido dos vícios anteriores”. Cruel.
É aqui que a democracia poderia tentar se refundar em suas práticas e virtudes. E a ideia essencial é: sociedade mais diversificada exige um conjunto maior de representantes. Exatamente isso que você leu: te segurei até aqui nesse texto para defender a ideia de que precisamos de 1.026 deputados federais, por exemplo, e não mais de 513. A sociedade está mais complexa, e a representatividade dessa complexidade pode ressignificar a política. Não! Não estou ficando doido, tampouco criando mecanismos para mais gastos públicos. O dinheiro não pode ser, tampouco será, um problema aqui. Com mais representatividade é óbvio que posso enxugar de forma expressiva as estruturas singularmente destinadas a cada parlamentar. No limite, uma discussão como essa nos traria alguns benefícios interessantes. O primeiro: aumentaria a diversidade na Câmara, e aproveitando a mudança, seria possível contemplar desafios expressivos. Por exemplo: se vamos dobrar, a hora de reservar espaço para gênero e raça é agora. O segundo: o parlamentar de hoje justifica dezenas de assessores porque precisa estar perto do seu eleitorado e ouvir sua gente, o que “sozinho” não consegue fazer. Perfeito: como terei o dobro dos parlamentares, poderemos ter algo entre um terço e metade das estruturas individuais nos mandatos. Inclusive, será essencial que parlamentares dividam gabinetes em Brasília. Tá vendo? Basta boa vontade e desejo de decidir. O terceiro: se eu tiro do parlamentar o direito de nomear assessores, e entrego ao cidadão o direito de contratar com seu voto mais parlamentares, eu torno o sistema infinitamente mais democrático. O quarto: dá pra reduzir os gastos com o Legislativo quando transformo algo desse jeito, sendo possível, inclusive, condicionar a transformação a uma redução constitucional do recurso enviado aos parlamentos pelos orçamentos das diferentes esferas de poder. Isso mesmo: dá pra fazer mais com menos se mudarmos o espírito da representação. A fome por democracia passa a ser enfrentada de forma quantitativa na busca por mais representação, e de forma mais qualitativa ao emprestar ainda mais espaço de contratação para o eleitor, e não para o eleito.
O problema disso tudo: mesmo aumentando sua probabilidade de se manter na política, o parlamentar dificilmente vai aceitar ter menos estrutura. Quem está dentro recebeu o poder e se acostumou rapidamente com as estruturas, não à toa tanta gente vende a alma para lá permanecer. Ideia como essa parece sandice por duas razões: quem decide não topa mudar, e quem pressiona não acredita que isso seja razoável – aqui o eleitor e o eleito têm um pacto silencioso e nocivo.
A democracia, definitivamente, está longe de ser compreendida. E o que vemos? Gente defendendo que a Câmara dos Deputados tenha metade dos 513 representantes, e alguns defensores de tais ideias não falam em mudar o orçamento do Legislativo. O resultado já conhecemos: quando a justiça decretou, unilateralmente, a redução do total de vereadores nas cidades em 2004, nada fez em relação aos percentuais orçamentários destinados às câmaras locais. Foi mais difícil de se eleger, mas quem conseguiu entrar na festa passou a contar, em muitas cidades, com mais recursos para seus mandatos. Parabéns. Tiramos o eleitor da jogada e demos mais recursos para menos vereadores. E depois reclamamos que #nãomerepresenta.
Humberto Dantas é doutor em ciência política pela USP e pós-doutor em administração pública pela FGV-SP. Coordenador dos programas de educação do Centro de Liderança Pública – CLP.