O protagonismo do Governo Federal na formulação e coordenação de políticas públicas passou a prefeitos e governadores. A omissão da União fez necessária a busca por alternativas próprias de enfrentamento à crise. Mas, se por um lado a ação dos entes subnacionais traz esperanças, de outro ela tem consequências negativas, como o aumento da desigualdade e disputa entre estados em detrimento ao bem comum da nação.
Artigo de Ergon Cugler*, Gabriela Lotta ** e Michelle Fernandez ***
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Há uma máxima na ciência política que diz que não existe vácuo de poder. E o que temos visto no federalismo brasileiro durante o Governo Bolsonaro exemplifica bem este processo. Para suprir o vazio gerado pela omissão de uns, nos deparamos com a ação de outros. Esse fenômeno pode ser visto em várias áreas de políticas, mas fica ainda mais evidente agora durante a pandemia.
No início da emergência sanitária da COVID-19 no Brasil, quando o Governo Federal deixou de divulgar os números de casos e óbitos, foi o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS) que tomou para si a responsabilidade de atualização dos dados. Após um ano, o CONASS segue pautando, por exemplo, maior rigor nas medidas de restrição das atividades não essenciais, além de um Plano Nacional de Comunicação e um Plano Nacional de Recuperação Econômica – estes ainda não apresentados pelo Governo Federal durante todo um ano de pandemia.
Já na educação, com a discussão de volta às aulas e sem nenhum pronunciamento do Ministério da Educação, restou à Frente Nacional de Prefeitos (FNP) articular esforços e cobrar do Ministério da Saúde para que os profissionais da educação fossem prioritariamente vacinados contra a COVID-19.
Mais recentemente, com a explícita omissão do Governo Federal na distribuição e logística das vacinas, prefeitos de 1.703 cidades, incluindo 24 capitais, aderiram ao consórcio Conectar (também da FNP) para aquisição de vacinas, além de estados que buscaram se articular via Fórum Nacional de Governadores para comprar vacinas direto de laboratórios internacionais.
Na contramão da vacinação, Bolsonaro chegou a vetar a possibilidade de estados e municípios vacinarem diretamente a população em caso de omissão do Ministério da Saúde. No entanto, a proibição não teve efeito prático, pois o Supremo Tribunal Federal já havia autorizado a compra e distribuição direta de vacinas por estados e municípios quando o Governo Federal descumprisse o Plano Nacional de Imunização pactuado.
É natural, e faz parte da democracia, que atores políticos com pautas e interesses diversos disputem entre si a construção da agenda governamental. Consórcios, frentes e fóruns diariamente articulam suas pautas em diversas arenas. No entanto, a posição de formulação e coordenação de políticas ocupada pelo Governo Federal em diferentes áreas temáticas passou a ser ocupada por grupos de prefeitos e governadores. Esses passam a buscar alternativas políticas de enfrentamento à crise por conta própria, já que não parece possível contar com o Governo Federal na liderança da pauta anti-crise.
Modus operandi
Com a omissão do Governo Federal em seu papel articulador tem restado aos entes subnacionais constituírem um Estado quase que paralelo. Isso representa uma transferência de responsabilidade que esvazia o potencial do Estado brasileiro. Tudo aquilo que poderia ser desempenhado pela União para enfrentar seriamente a pandemia, deixa de ser realizado diante da ausência de esforços do Governo Federal em prol da coordenação federal de medidas de enfrentamento à pandemia.
Se, por um lado, a ação dos entes subnacionais frente à omissão federal pode trazer esperanças – afinal alguém está agindo – ela também tem várias consequências negativas. Ancorado em ideais de coordenação e cooperação, o modelo federativo brasileiro tem o papel de gerar algum grau de coordenação de ações em um país de dimensões continentais e altamente desigual. A combinação da indução de algumas políticas e a capacidade de adaptação em nível local tem amplos efeitos na redução de desigualdades (Arretche, 2012).
Aumento da desigualdade
A omissão do Governo Federal em seu papel de coordenador provoca, nesse sentido, uma desestabilização do próprio modelo de federalismo e as consequências disso tendem a ser perversas. A principal delas reside no aprofundamento da desigualdade. Se sua redução foi uma conquista em áreas como saúde e assistência, a falta de coordenação já tem mostrado seus efeitos nestas mesmas áreas. Não é coincidência que a Região Norte, que detém historicamente piores indicadores de capacidades estatais, tenha sido a região mais atingida pelos efeitos da pandemia.
Disputa entre estados
Uma segunda consequência da falta de coordenação é a transformação de uma nação unificada em um conjunto de estados em disputa. Estados e municípios seguem cada um seu caminho de acordo com consórcios, frentes e fóruns que compõem. Gera-se, assim, tanto uma sobreposição de agendas (que podem inclusive ser opostas entre si), quanto um descompasso nacional que limita a integração entre normas federais e decisões locais – imprescindível para gestão do Sistema Único de Saúde, por exemplo. No tema da compra das vacinas isso é evidente. Na falta de uma ação de aquisição nacional coordenada, cria-se um ambiente de disputas entre governadores e prefeitos buscando garantir a sua população. Num cenário de restrições, a competição tem efeitos cruéis.
Sabemos que o contexto da pandemia enfrentado pelo Brasil nos dias de hoje é bastante desafiador. Para encarar esse cenário, é fundamental contar com ações coletivas e coordenadas. Nesse sentido, a estratégia descoordenada que está posta tende a aumentar desigualdades e a não ser efetiva para conduzir-nos à saída desta crise.
* Ergon Cugler | Pesquisador da EACH-USP, associado ao Observatório Interdisciplinar de Políticas Públicas (OIPP) e colaborador do Oxford COVID-19 Government Response Tracker (OxCGRT).
**Gabriela Lotta | Professora da EAESP-FGV. Coordenadora do Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB) e Pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM).
*** Michelle Fernandez | Professora e pesquisadora no Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (IPOL/UnB). Pesquisadora do Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB) e Pesquisadora-colaboradora do Instituto Aggeu Magalhães/Fiocruz.