Novo marco legal atrai a participação das empresas privadas, cujos investimentos deverão superar R$ 500 bilhões nos próximos anos. Depois de Alagoas e do Rio Janeiro, será agora a vez do Amapá fazer a concessão da rede de água e esgoto
O Amapá, em plena Amazônia, ostenta alguns dos piores índices de acesso ao saneamento básico em todo o País. A água tratada chega a apenas 38% das casas e estabelecimentos comerciais. A cobertura da coleta de esgoto é ainda menor: apenas 7% da população é atendida. Essa realidade de atraso e descaso deve ficar no passado a partir de amanhã (quinta-feira, 2 de setembro), quando ocorre na B3 o leilão de concessão dos serviços de saneamento no estado.
A empresa vencedora vai administrar o fornecimento nos 16 municípios do estado. Os investimentos estimados para a próxima década superam R$ 3 bilhões. A meta, estipulada em contrato, será levar água encanada e tratada para 99% da população e a rede de esgoto deverá atingir 90% dos domicílios.
Depois dos bem-sucedidos leilões em Alagoas e Rio de Janeiro, a licitação do Amapá é mais uma que ocorre desde a aprovação do novo marco legal do saneamento. O leilão poderá dar exemplo para os estados vizinhos. Na região Norte, pouco mais de 10% das residências estão conectadas à rede de esgoto. É o pior índice do País. Trata-se de um lembrete de que a proteção da Amazônia não depende apenas do combate às queimadas e ao desmatamento ilegal.
Pelo menos outras oito grandes concessões públicas dos serviços de saneamento estão previstas para acontecer em 2021 e 2022, de acordo com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). No conjunto, esses projetos preveem investimentos superiores a R$ 30 bilhões, em benefício de 25 milhões de pessoas.
Os números demonstram que a aprovação do novo marco legal do saneamento básico, no ano passado, poderá ser uma das maiores reformas sociais feitas no País nos últimos anos. A nova legislação incentiva os investimentos privados e traz mais concorrência entre as empresas. O mais importante, contudo, é que o marco traz um objetivo bem definido: universalizar o acesso a água tratada e coleta de esgoto em todo o País até 2033. As companhias que não se mostrarem capazes de realizar os investimentos necessários, seja por questões técnicas ou financeiras, deverão perder os contratos. Será um golpe contra as estatais ineficientes.
Em abril, o governo do Rio de Janeiro licitou três dos quatro blocos oferecidos para assumir os serviços hoje prestados pela Cedae, a problemática empresa estatal de saneamento. Foram arrecadados R$ 22,6 bilhões. O negócio, além de melhorar a qualidade dos serviços, vai contribuir para sanar as contas do estado. A concessionária Águas do Rio, que arrematou dois blocos, acabou de assinar o contrato e anunciou a contratação de 6 mil trabalhadores diretos. A empresa privada pertence ao grupo Aegea.
A universalização do saneamento no País exigirá investimentos estimados entre R$ 500 bilhões e R$ 700. Assim o setor deverá finalmente deixar para trás o atraso vergonhoso de uma mazela que já deveria ter sido sanada há décadas. São raros os brasileiros sem acesso a celulares e à internet. Mas existem 35 milhões de pessoas que moram em casas sem água tratada e mais de 100 milhões vivem sem esgoto. A falta de saneamento está associada ao aumento de doenças, à dificuldade dos alunos em estudar e à baixa produtividade dos trabalhadores. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), cada US$ 1 investido em água e esgoto representa uma economia de US$ 4,3 em gastos com saúde.
Os custos desse atraso para o Brasil são notórios. Mas faltava um arcabouço regulatório para elevar a competição no setor e atrair mais investidores capazes de fazer frente à ineficiência das estatais que ainda controlam os serviços na maior parte dos municípios.
Atualmente, a participação das empresas privadas ainda é pequena no setor de saneamento: elas estão apenas em 7% das cidades. Ainda assim, são responsáveis por um terço dos investimentos.
Com o objetivo de auxiliar os prefeitos e os gestores públicos a atrair investidores e implementar o novo marco legal, o Centro de Liderança Pública (CLP) desenvolveu um guia completo sobre o assunto: a Cartilha do Saneamento. Trata-se de um portal onde se podem encontrar informações sobre a regulamentação, os papéis de cada entidade pública, as possibilidades de contratos, forma de financiamento e modelos de parcerias, entre outros assuntos. O guia traz também dados sobre a cobertura do saneamento básico nas capitais e em diversas cidades. É possível fazer comparativos por meio da plataforma do Ranking de Competitividade dos Municípios, também criado pelo CLP.
A cartilha foi lançada ontem em uma live com a participação de gestores públicos e especialistas no assunto. “A aprovação do novo marco foi um primeiro passo, mas precisamos materializar essa realização”, disse Tadeu Barros, diretor do CLP. “A plataforma vai auxiliar os gestores a compreender como universalizar o saneamento.”
O BNDES tem atuado como consultor em boa parte dos projetos. Presente ontem no encontro, o diretor do banco para a área de estruturação de parcerias, Cleverson Aroeira, explicou como as soluções precisam ser adaptadas dentro do contexto de cada um dos projetos. Para que municípios muito pequenos fiquem de fora, por exemplo, é necessário incluí-los em blocos regionais, eventualmente envolvendo mais de um estado. “A gente só consegue resolver o problema de saneamento básico em diversas localidades, se tivermos esse olhar regional”, afirmou. “Precisamos ter uma visão solidária entre os entes federativos.”
Perante o atraso histórico, as metas do novo marco parecem ambiciosas: atingir até 2033 as marcas de 99% das residências com acesso à água tratada e 90% delas ligadas ao esgoto. Mas as histórias de sucesso de quem saiu na frente nas concessões demonstra que os objetivos são plenamente alcançáveis, desde que os gestores superem as resistências políticas e corporativas. Nisso, os prefeitos e gestores locais terão um papel-chave, como afirmou Stela Goldstein, coordenadora nacional do 2030 Water Resources Group, entidade vinculada ao Banco Mundial: “Existe o marco legal e a moldura para atrair investidores e gerenciar contratos. São avanços dos quais o Brasil estava necessitando. Agora devemos garantir a implementação. Só vamos conseguir fazer isso com uma participação muito efetiva dos municípios”.