Cientista político, ex-secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência e pesquisador de Harvard, diz que combate ao terrorismo deixou de ser prioridade e comenta as consequências da tomada de Cabul pelos radicais do Taleban
A queda de Cabul e o domínio do Taleban, após duas décadas de guerras, demonstraram o fracasso do projeto americano de “construção de nação” (“nation building”, no termo em inglês) que tentou ser aplicado no Afeganistão. Ao longo dos anos, os Estados Unidos procuraram formar um governo com base em lideranças sem a legitimidade ampla dos grupos étnicos e das comunidades que constituem a sociedade afegã. Com a retirada das forças militares e o fim do aporte estrangeiro de capitais, o regime apoiado por Washington estava destinado a ruir.
Essa é a análise do cientista político Hussein Kalout, especialista em relações internacionais e pesquisador da Universidade Harvard. Kalout foi secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência durante o governo de Michel Temer. Em conversa com o Virtù, ele analisou as razões da derrota americana e comentou as consequências locais e geopolíticas da vitória do Taleban.
“O modelo de ‘nation building’ é sectário, procura excluir grupos representativos. Por isso, tende a falir”, disse Kalout. “No Afeganistão, havia sido incluída no poder apenas uma pequena parcela de lideranças afegãs, sem representatividade.”
O Tabelan, a despeito de seu radicalismo islâmico e de práticas anti-humanitárias, representa uma força arraigada no país e é popular entre diversos grupos locais.
“Os Estados Unidos cometeram o erro de instalar lideranças não legítimas e quando o regime caiu tiveram que ir embora. Elas não tinham esteio na sociedade”, afirma Kalout. “A saída americana é coerente dentro do que foi proposto desde o governo Obama e demandada pela população. As Forças Armadas dos Estados Unidos também desejam se retirar.”
O Oriente Médio e o combate ao terrorismo deixaram de estar no topo das prioridades da política externa americana. “O foco dos Estados Unidos agora é a contenção do poderio econômico da China”, diz. “Os americanos não podem mais gastar energia e dinheiro com guerras que não agregam mais nada estrategicamente.”
Ao mesmo tempo, a China, ao lado de seus aliados no Paquistão, terá agora que administrar o radicalismo do Taleban. O Afeganistão faz fronteira com a província de Xinjiang, território das comunidades da etnia muçulmana uigur, cujos movimentos separatistas são reprimidos pela mão forte de Pequim. Algo parecido vale para a Rússia, que não quer ver o fortalecimento de rebeldes separatistas em nações satélites de Moscou. “O Taleban terá que se moderar, se não vai atingir os interesses da Rússia e China”, comenta Kalout.
“Tudo indica que o Taleban não será o mesmo que foi há 20 anos, mas não quer dizer que não haverá radicalismo de matriz religiosa”, diz. “Mas não será um modelo ocidental. Trata-se de uma sociedade tribal, com suas características culturais. Nesse sentido, não vejo com otimismo a questão dos direitos humanos. Mas a graus de fundamentalismo religioso. Poderão ser mais moderados para obter reconhecimento internacional.”
Kalout é cético quanto à possibilidade de o Brasil liderar esforços para abrigar refugiados. “Temos uma política externa errática. É preciso ter vontade política e recursos para abrigar refugiados. O governo é contra o multilateralismo. Seria necessário um projeto de inserção e acompanhamento dos refugiados. Não consigo ver esse governo fazendo isso.”