Com extinção da prisão após condenação em segunda instância, STF está prestes a repetir marca da Justiça brasileira: favorecer os iguais, punir os desiguais.
Vai ser difícil para o STF explicar ao distinto público que não foi apenas mais um conluio das elites o festival de impunidade a ser aberto com a extinção da prisão depois da condenação do réu em segunda instância. Se, ao que tudo indica, for essa mesma a decisão da votação que recomeça na quinta-feira, dia 7 de novembro próximo, a corte constitucional brasileira vai repetir um antigo vício do Estado brasileiro, a distribuição de benesses para as classes mais altas.
Saem os poderosos
Sairão da cadeia, pela ordem, primeiro os mais ricos e poderosos politicamente, entre eles Lula e Eduardo Cunha, ex-presidentes de dois poderes da República, do Executivo e do Legislativo. Logo em seguida serão libertados os grandes empresários presos e condenados por crimes no bojo da Operação Lava-Jato. Depois deles, saem da cadeia os traficantes e outros bandidos caixa-alta. Vão ser soltos logo os que mais dinheiro têm para pagar bancas de advocacia caríssimas. Um tradicional político sempre enrolado com processos por corrupção dizia que seus “amigos” guardavam sempre a metade do que obtinham em propinas e outros golpes contra a economia popular para pagar advogados e nunca ir para a cadeia. Os bagrinhos condenados, talvez injustamente, por terem furtado um pote de iogurte no mercado do bairro vão ter que esperar – e muito. É provável que quando chegar a vez deles o STF já tenha mudado de ideia outra vez sobre esse assunto e reestabelecido a prisão depois da condenação em segunda instância.
Vai ser difícil explicar que a corte constitucional brasileira apenas chancelou um acordo entre as elites econômicas e políticas para poupar seus integrantes da terrível sina de serem tratados como iguais perante a lei. Alguns, os mais ricos e poderosos, são sempre “mais iguais” do que os demais. Mas só com muita sorte, um preso pobre conseguirá alçar seu caso às instâncias superiores, onde os senhores ministros estão sempre muito ocupados em tirar da prisão aqueles a quem devem solidariedade de classe.
História classista
O Estado brasileiro sempre foi classista. Isso parece não ter fim. Onde se olham reparações feitas pelo Estado lá está a marca do favorecimento aos mais iguais. Tome-se como exemplo a comparação da indenização em dinheiro paga aos presos políticos beneficiados pela Lei a Anistia de 1979. Tomando-se apenas os casos mais célebres de dois brasileiros que entraram vivos e com saúde nos cárceres do governo militar e saíram de lá mortos em 1976. Um, o jornalista Vladimir Herzog, o outro o metalúrgico Manoel Fiel Filho. Ambos militantes comunistas. A família de Herzog recebeu – sem que tenha pedido, registre-se – indenizações bem superiores ao caraminguá de 45 000 reais (em dinheiro de hoje) pagos à família de Fiel Filho. Entenda-se, ambos são vítimas e suas famílias não podem ser responsabilizadas pelos valores recebidos que, tampouco, reparam a perda de suas vidas. Mas a razão pela qual a família do metalúrgico recebeu bem menos do que os sobreviventes do jornalista tem relação direta com a classe social de um de outro. Com que perfil os senhores que decidiram esses valores se identificam mais? Com o do metalúrgico ou com o do jornalista. O padrão é premiar melhor os ofendidos da própria classe.
Interpretação mística da Constituição
Mas não será isso apenas a se lamentar da leitura particular que o STF fez da Constituição, cujo artigo 5º veda a “condenação” até o “trânsito em julgado”. Atenção. A Constituição não veda a prisão, mas a condenação. São figuras jurídicas totalmente distintas, porém embaralháveis, como o STF está prestes a demonstrar. Nossa constituição, suas emendas e leis complementares resultaram em uma babel de saber jurídico com a mesma precisão dos búzios, do jogo de dardo ou da leitura das vísceras de animais ofertados aos deuses na antiguidade. Os poderosos fazem dela a leitura que acham conveniente em cada momento. É trágico que os ministros da corte maior tenham se esquecido de uma lição histórica do italiano Cesare Beccaria (1738-1794), famoso autor de “Dos Delitos e das Penas”. Ensina Beccaria que a punição de um réu pelo Estado tem, principalmente, o objetivo de atenuar o desejo de vingança, de não deixar fermentar a amargura nas almas daqueles que foram prejudicados pela ação destrutiva do criminoso e, assim, apaziguar a sociedade. É um risco mexer nesse frágil equilíbrio.