O professor da UFRJ e ex-presidente da SABESP, LIGHT, ANEEL e ANA trata das graves consequências da crise do coronavírus e da importância de um novo pacto social centrado na diminuição das desigualdades e no aumento da produtividade. Há duas rotas para atingir esse duplo objetivo: a mais longa é a educação; a de mais rápida maturação é a Reforma Administrativa. É urgente para o Brasil.
Aglomerações sociais continuam a ocorrer no Brasil por falta de bom senso ou por falta de dinheiro, apesar do óbvio risco de espalhamento do vírus. Na segunda categoria se encaixam as multidões que se acotovelam em frente das agências da Caixa em busca da ajuda dos R$ 600 mensais. Exibição constrangedora do País desigual que construímos, incapaz de saber nome, cpf e endereço de cerca de 60 milhões de brasileiros que vivem à margem do Brasil oficial.
A despeito desse problema, que certamente será resolvido pela tecnologia, os R$ 600 são essenciais para que se possa manter o distanciamento social, cujo objetivo é impedir que o número de pessoas contaminadas que entram nos hospitais com necessidade de cuidados intensivos seja maior do que o número de pessoas que saem, por alta ou óbito. Respeitada essa inequação, ninguém morrerá por falta de atendimento. Claro, em alguns poucos dias o fluxo de entrada pode ser maior do que o de saída, desde que haja estoque de leitos livres nas UTIs. Mas não haverá estoque capaz de manter o controle se o desbalanço entre entrada e saída permanecer por muitos dias.
O objetivo dos empréstimos subsidiados
A distribuição de recursos públicos na forma de empréstimos subsidiados para as empresas tem o objetivo de manter os empregos e o funcionamento dos serviços essenciais, por exemplo, água e eletricidade. Sem essa providência, a capacidade produtiva do País seria desmantelada. Com a ajuda, será possível retomar a produção quando terminar a crise, diferentemente do que ocorreria numa guerra convencional. Porém, o País sairá da crise inevitavelmente mais pobre e com maior dívida. Fala-se de um esforço da ordem de 500 bilhões de reais, uma quantia suficiente para construir boas unidades habitacionais para todos os favelados do Brasil.
Despesa extraordinária restrita ao coronavírus
Para que não se perca a confiança dos credores de que o Governo será capaz de pagar essa nova dívida, principalmente de nós brasileiros que aplicamos nossas economias em títulos lastreados pelo Tesouro, é preciso, no curto prazo, limitar a despesa extraordinária ao estritamente relacionado ao coronavírus. Nada de pegar carona para solucionar problemas que já existiam antes da crise. No médio prazo, voltar a produzir o mais cedo possível.
Não é simples descobrir quando é “o mais cedo possível”. Definir a regra de “desconfinamento” é tarefa complexa que certamente deve ser realizada por epidemiologistas. Porém, não apenas por eles. É também preciso que gestores públicos façam previsões sobre a evolução da capacidade da rede hospital, economistas sobre as finanças públicas, administradores sobre gargalos logísticos, sociólogos sobre inquietações sociais e matemáticos sobre a difusão da pandemia.
O pagamento da dívida pública
Com os cenários atuais, é razoável supor que a dívida pública evoluirá de pouco mais de 70% do PIB para cerca de 90%. Como essa dívida será paga? Com inflação, como fizemos no passado, penalizando os mais pobres? Com tributação sobre o patrimônio? Com aumento da alíquota dos tributos atuais?
A discussão sobre essas alternativas influenciará o ambiente político dos próximos anos. As consequências da crise são tão sérias que das cinzas do sofrimento pode surgir o milagre da celebração de um novo pacto social, centrado na diminuição das desigualdades e no aumento da produtividade. Com base na experiência dos países que deram certo, não há dúvida que a educação é a rota mais segura para atingir esse duplo objetivo. Desde, é claro, que se mantenha o foco por algumas décadas. Adicionalmente, devem ser realizados esforços paralelos, de mais rápida maturação. Talvez o mais simples, até porque a discussão já se encontra no Congresso Nacional, é a reforma administrativa.
Estado burocrático e ineficiente
É inquestionável que a população recebe um serviço de qualidade bem inferior ao que seria possível produzir com a soma de impostos e/ou tarifas para manutenção dos serviços públicos. Os administradores públicos, quando competentes e bem intencionados, não se conformam com esta situação. Entretanto, são em geral imobilizados pelo cipoal burocrático tecido pela presunção de culpa, e não, como deveria ser, pela presunção de inocência.
A exibição de cenas explícitas de corrupção em anos recentes teve o indiscutível mérito de inibir a atuação de administradores desonestos, outrora amparados pela certeza da impunidade. Por outro lado, teve o demérito de exacerbar a cautela dos administradores honestos, que passaram a ser vistos com desconfiança pela população. Nesse ambiente, o melhor é nada decidir e sim postergar. Uma vez que a diligência não é premiada na administração pública e a inoperância raramente é punida, nada acontecerá. A não ser o mau atendimento à população.
Como bem apontado pelo excelente artigo A abundância e a escassez de recursos no setor público, “é mais fácil para o gestor deixar de gastar do que arriscar. Sem ser premiado por resultado, nem por esforço, qual a racionalidade de se expor ao risco? Não fazer nada é, paradoxalmente, a decisão individualmente ótima – a despeito de ser uma tragédia social…
Os órgãos de controle no Brasil precisariam resgatar sua missão: garantir o bom uso do dinheiro público – e não impedir qualquer uso no processo. Os números são claros: estancar a sangria da baixa execução é dezenas de vezes mais importante do que a obsessão com impedir a corrupção, sobretudo quando falamos de problemas com processos de compras de governos subnacionais”.
A reforma do Estado
O Congresso deve produzir uma reforma administrativa que incentive a celebração de contratos de gestão para que o administrador público possa adotar processos de gerenciamento mais eficientes, baseados na meritocracia, já utilizados no setor privado. Deve também dificultar a contratação de fiscais em excesso ao que seria tecnicamente necessário a cada evento em que se constate o escoamento de recursos públicos para os ralos da corrupção ou o represamento nas muralhas da incompetência. Um contingente exagerado de fiscais tende a dificultar a atuação não apenas dos corruptos mas também dos honestos.
Nesses dias de crise, mais e mais brasileiros desconfiam das fake news e buscam informação de qualidade na mídia profissional. Os meios de comunicação têm correspondido a essa renovada confiança divulgando não apenas os lances escabrosos de mau funcionamento da máquina pública, quando o dinheiro público é desperdiçado ou o cidadão desrespeitado, mas também os casos em que ocorra exatamente o contrário. Isto é, situações em que os agentes públicos, no caso os profissionais de saúde, fazem mais do que o trivial para a produção de um bom resultado. Trata-se de uma importante mudança de nossa cultura, que costuma ridicularizar os heróis e cultuar os malandros.