VirtuNews reuniu dois especialistas para analisar o contexto da criação da nova lei, suas consequências e os vetos do presidente, que deverão ser avaliados pelos parlamentares hoje.
O STF enquadrou, em junho passado, homofobia e transfobia como crimes. É elogiável e corajosa a intenção de punir crimes motivados pela intolerância a homos e trans. Legislar sobre fobias, porém, exige destemor ainda maior. Fobia é “medo extremo e irracional”. Por mais doutos que sejam os senhores ministros, sua ciência jurídica não atua sobre a amígdala e o hipocampo, que formam o sistema límbico, sede das reações irracionais dos seres humanos. Portanto, o meritório objetivo de “incriminar atos atentatórios a direitos fundamentais dos integrantes da comunidade LGBT” poderia ter sido obtido sem atentar contra a lógica, a etimologia e as ciências médicas.
É também uma contradição em termos a aprovação de uma Lei de Abuso de Autoridade. Em tempos mais respeitosos com a lógica e a gramática, o Congresso teria votado uma lei ordenando o uso da autoridade. O abuso, por definição, é um desacato às leis vigentes, carecendo, portanto, de novas leis para delas também abusar. A exemplo das fobias, os abusos são eventos que, por razões distintas, ignoram as leis.
Mas agora temos uma Lei de Abuso de Autoridade, que sofreu vetos presidenciais e que, mesmo com sua denominação capenga, deverá, em breve, entrar em vigor.
O principal argumento do Congresso para passar a iniciativa foi a necessidade de criar mecanismos para impedir que agentes públicos responsáveis por investigações, como o Ministério Público, Procuradoria e as polícias extrapolassem de suas funções.
Aprovado no Senado, o texto foi para o presidente Jair Bolsonaro, que sancionou a lei, mas vetou 33 pontos. Em votação nesta terça-feira, parlamentares votaram contra 18 vetos do presidente; 15 foram mantidos. VirtuNews reuniu dois especialistas para analisar o contexto da criação da nova lei, suas consequências e os vetos do presidente, que deverão ser avaliados pelos parlamentares hoje. O professor Leandro Piquet Carneiro é coordenador da Rede Interamericana de Desenvolvimento e Profissionalização Policial (Redppol) e docente do Instituto de Relações Internacionais da USP. João Pedro Paro é pesquisador associado ao Centro Ibero-americano da USP e coordenador adjunto da Redppol.
Ambos concordam que a nova lei representa avanços e que os vetos do presidente ajudaram a contornar problemas. Também acreditam que a intenção do Congresso não tenha sido apenas frear o abuso de autoridade. A seguir os principais trechos da entrevista.
A lei de abuso de autoridade é necessária?
Virtù: O Congresso aprovou e o presidente da República sancionou a lei de abuso de autoridade. Na sua avaliação, o Brasil necessitava de uma lei com esse teor?
Leandro Piquet Carneiro: O problema existe, mas a razão do Congresso ter votado essa lei, neste momento, não parece ter relação direta com o problema principal que a lei poderia ajudar a resolver. Há violações cotidianas de direitos civis praticadas por policiais, maus tratos no sistema prisional, torturas, morosidade da justiça, abusos pelo Ministério Público, e vários outros problemas no sistema de justiça criminal que justificariam uma lei especialmente dedicada a conter o abuso de autoridade, mas entendo que a motivação dos legisladores está em outro lugar; na defesa da classe política contra o “lavajatismo”.
Virtù: O senhor poderia explicar melhor essa reação?
Piquet Carneiro: Não são poucas as manifestações em que os políticos contrariados com os excessos da Lava-Jato evocaram os direitos dos jovens pobres das periferias. Acho, no entanto, que os congressistas estão preocupados com as investigações de corrupção e não com o que está acontecendo nas delegacias de polícia dos bairros pobres do país. Claro que há aqueles que votaram por convicção, mas o tema ficou parado sem nenhuma ação legislativa desde que o então deputado Raul Jungmann apresentou dois projetos de lei sobre a matéria há mais de dez anos. Até que, de repente, o Congresso teve um surto cívico e se interessou em fazer alguma coisa para resguardar o direito dos jovens da periferia que sofrem o cotidiano da violência policial. É difícil acreditar nisso.
Virtù: Mas se já temos leis que dizem como os órgãos devem funcionar por que precisamos de uma lei para dizer o que configuraria abuso? As leis que já existem não pegaram?
Piquet Carneiro: É verdade que o Código Penal já prevê o crime de exercício arbitrário ou abuso de poder no artigo 350, mas de forma muito genérica. Do ponto de vista do trabalho policial, o controle do abuso depende muito da adoção de práticas de controle interno e externo. As polícias no País ainda são, em sua maioria, muito ineficientes na adoção de mecanismos de controle, como os procedimentos padronizados, o treinamento e o controle pelas corregedorias. No Ministério Público e na Justiça, a mesma coisa. Houve avanços recentes importantes com a criação do Conselho Nacional de Justiça e o Conselho Nacional do Ministério Público em 2004, mas ainda são poucas as punições por abuso. O que acontece atualmente é que as leis que dizem como os órgãos devem funcionar não preveem que as condutas abusivas devam ser punidas com rigor.
Os vetos de Bolsonaro foram necessários?
Virtù: O presidente sancionou, mas vetou 36 dispositivos da nova lei. Na sua avaliação, os vetos foram necessários ou eles enfraquecem o propósito geral da nova lei?
João Pedro Paro: Os vetos ajudaram a resolver algumas ambiguidades da lei aprovada pelo Congresso. Principalmente na definição dos crimes imputados aos agentes públicos que incorrem no chamado abuso de autoridade. Por exemplo, a ideia de justa causa usada nas definições dos crimes de proibição de reunião (Art. 35), impedimento de entrevista (art. 20) e o crime que pune o fato de dar início a processo sem justa causa (art. 30). A insegurança jurídica nestes casos é um fator de instabilidade para o sistema de justiça, pois, afinal de contas, qual a base objetiva para a definição de uma justa causa?
Virtù: Há mais subjetividades no texto aprovado?
Paro: Há outras condutas tipificadas na nova lei que também estão sujeitas à interpretação subjetiva. Os artigos que envolvem a captação de imagem de preso, internado, investigado ou indiciado (Art. 14); uso de algemas no caso de ausência de resistência ou ameaça (art. 17), a criminalização da ostensividade desproporcional na condução de diligências (Inciso II do § 1º do art. 22), ou até mesmo da negativa de acesso aos autos do processo (Art. 32). Cada uma destas condutas implica num juízo de valor comparativo e de natureza pessoal por parte dos envolvidos nas operações policiais.
Virtù: A avaliação geral com relação aos vetos é então mais positiva que negativa?
Paro: De uma maneira geral, os vetos presidenciais eliminaram ambiguidades na definição do crime de abuso de autoridade e resguardaram princípios “saudáveis” de discricionariedade que são inerentes ao trabalho policial e à persecução criminal. Há vetos, no entanto, que provavelmente serão derrubados pelo Congresso, pois atingem dispositivos de garantia de direitos que são valorizados por amplos setores da sociedade.
Virtù: Qual artigo ou trecho da nova lei que não foi vetado que o senhor considera mais relevante na questão do controle do abuso de autoridade?
Paro: Principalmente o artigo quarto da lei, o qual criminaliza o ato de ordenar ou executar medida privativa da liberdade individual sem as formalidades legais ou com abuso de poder. Ainda nesse artigo estão tipificados os delitos de submeter pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei; deixar de comunicar, imediatamente, ao juiz competente a prisão ou detenção de qualquer pessoa; deixar o juiz de ordenar o relaxamento de prisão ou detenção ilegal que lhe seja comunicada; levar à prisão e nela deter quem quer que se proponha a prestar fiança, permitida em lei.
Virtù: Entre os vetos, quais o senhor considera fundamental que o Congresso derrube?
Paro: O veto ao dispositivo que estabelece a preservação do direito ao silêncio em caso de ausência de advogado e defensor (parágrafo único do art. 15,) deveria ser derrubado, considerando-se a Constituição Federal e os tratados internacionais dos quais o país é signatário. O Congresso tem ampla base jurídica para restabelecer o princípio básico de que se o interrogatório produz provas para um processo, o investigado deve ter o direito à uma defesa técnica.
Virtù: Mais algum veto presidencial mereceria destaque?
Paro: Entre os pontos polêmicos vetados pelo presidente estão ainda a questão da ausência ou falsidade de identificação no ato de prisão ou captura (Art. 16), o flagrante induzido ou preparado (Art. 26), o caso de omissão de dado ou informação sobre fato juridicamente relevante e não sigiloso (parágrafo único do art. 29), a conivência com erro processual (Art. 34), proibição em antecipar juízo de valor sobre processo ou investigação sem que o ato tenha se concretizado (art. 38) e a criminalização de violação da prerrogativa de advogado (Art. 43). Esses vetos são mais prováveis de serem derrubados pelo Congresso, pois atingem as expectativas da sociedade sobre o funcionamento do sistema de justiça criminal.
Combate à corrupção ou à criminalidade?
Virtù: A nova lei, de alguma forma, dificulta o combate à corrupção ou à criminalidade?
Piquet Carneiro: Gostaria de lembrar que as investigações contra a corrupção no país ganharam um enorme impulso quando os promotores e juízes da Lava-Jato “descobriram” que a lei do crime organizado, a conhecida 12.850 de 2013, poderia ser utilizada para esse fim. Sem a delação premiada e a ação controlada, aspectos regulados pela lei do crime organizado, não haveria Lava-Jato e não teríamos uma parte importante da nossa elite política investigada, condenada e cumprindo penas de prisão. Os congressistas não tiveram uma visão clara de que eles mesmos poderiam ser investigados com base na lei que parecia facilitar apenas a ação contra traficantes de drogas e outros infratores “não-governamentais”. Basta lembrar que a lei do crime organizado de 2013 foi proposta por uma senadora do PT com total apoio do governo, também do PT. A delação premiada, a ação controlada e demais inovações legais que facilitariam a investigação de crimes complexos dificilmente seriam questionadas pelo Congresso se tivessem atingido apenas o “terceiro setor” do crime. O problema é que atingiram em cheio o “primeiro setor”. Isso explica o rápido consenso em torno da necessidade uma lei do abuso da autoridade.
Virtù: Quanto aos riscos de retrocesso no combate à corrupção…
Piquet Carneiro: Há realmente risco de retrocesso no combate à corrupção e ao crime organizado com a nova lei, devido às ambiguidades que podem gerar insegurança jurídica, com evidente vulnerabilidade para os agentes públicos responsáveis pela luta contra o crime. No entanto, as intenções do legislador não se limitaram a frear a Lava-Jato, pois, de fato, alguns dos dispositivos introduzidos na lei podem contribuir para diminuir os abusos da autoridade jurídica ou das violências praticadas por autoridades policiais. O formato final da lei acabou ficando bastante razoável. A meu ver, as condutas ali previstas devem ajudar a criar segurança jurídica procedimental da perspectiva do cidadão e, principalmente, orientar a autoridade pública a agir de forma responsável.
“][testimonial image=”250″ star_rating=”none” title=”Testimonial” id=”1576778737575-8″ tab_id=”1576778737576-10″ name=”João Pedro Paro” subtitle=”Pesquisador associado ao Centro Ibero-americano da USP e coordenador adjunto da Redppol” quote=”Então, se por um lado a nova lei pode gerar receio de autoridades por punições e obrigações de indenizar a vítima, temos também que considerar que tais punições ou indenizações só seriam aplicadas em caso de efetivo abuso que agora é configurado como conduta criminosa. A nova lei, portanto, ao contrário de significar necessariamente um movimento de retrocesso no combate à corrupção poderia ser entendida como ajuste necessário para que as autoridades tenham um parâmetro claro, um guia de conduta orientado pela legalidade de suas decisões.
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