A Lei de Improbidade tornou-se instrumento de perseguição a gestores públicos e de criminalização da política. Sua revisão é bem-vinda. O PL 10.887/2018 elimina a falta de clareza que traz obstáculos à gestão pública e acaba por não cumprir seu papel inicial: combater a corrupção.
Criada para combater a corrupção na gestão pública, a Lei da Improbidade Administrativa se transformou em instrumento de intimidação e perseguição política. Imprecisa em seus critérios, deu margem a uma montanha de processos judiciais. Serve para condenar tanto os verdadeiramente corruptos como aqueles que, eventualmente, tenham cometido simples equívocos burocráticos.
Na prática, essa legislação tem inibido os bons gestores, que temem tomar ações que possam ser interpretadas como delituosas. Por isso, deve ser vista como positiva a iniciativa de aprimorá-la, como propõe o PL 10887/18 em tramitação na Câmara.
Origem da Lei e sua aplicação
A Lei 8.429, a chamada Lei da Improbidade Administrativa, foi aprovada em 1992, em uma resposta à onda das denúncias de corrupção no governo de Fernando Collor. Desde então, tornou-se um dos principais instrumentos para os promotores de todo o país agirem contra agentes públicos pegos em situações suspeitas.
Essa lei, entretanto, vem sendo aplicada de maneira extremamente abrangente e sem critérios, em razão da grande margem interpretativa oferecida por alguns de seus artigos. Estão sendo condenados, indistintamente, desde pessoas pegas de fato cometendo atos dolosos ao erário ou que tenham enriquecido ilicitamente até outras que apenas cometeram erros administrativos ou deslizes culposos – sem a intenção de cometer ato criminoso.
Em linhas gerais, a legislação prevê quatro tipos de improbidade: enriquecimento ilícito, prejuízo ao erário, concessão de benefícios indevidos e atos que atentem contra os princípios da administração pública. O nó está nesse último ponto. O que é atentar contra os princípios da administração pública? A depender da avaliação de promotores e juízes, pode ser qualquer omissão ocorrida no governo ou meros erros burocráticos. Um prefeito pode perfeitamente ser denunciado por omissão mesmo não tendo nenhuma ligação direta com a eventual ilicitude.
A amplitude interpretativa, aliada ao ativismo dos promotores, desencadeou uma avalanche de processos.
A cada ano, mais de 2.000 brasileiros são condenados definitivamente por crimes de improbidade administrativa.
Ausência de clareza
A Transparência Internacional e a FGV, em uma análise sobre as medidas anticorrupção, destacaram a “insegurança no juízo de dosimetria das sanções aplicadas na improbidade administrativa foi a ausência de parâmetros claros e seguros para o juiz se guiar”.
Um levantamento do Instituto de Direito Público (IDP) dá uma mostra de como a atual lei foi desfigurada de seu propósito original. Depois de analisar 806 recursos em ações de improbidade ocorridas em municípios de todo o país, o estudo identificou que menos de 10% das ações contra prefeitos foram motivadas por enriquecimento ilícito (88 casos no total). Metade dos processos se refere ao vago conceito de ofensa aos “princípios da administração pública”. Além disso, a análise revelou que a perda dos direitos políticos é a punição mais frequentemente aplicada, apesar de a lei prever outras formas mais brandas de sanção. Atos de baixa gravidade recebem penas similares às dadas a crimes graves e bem documentados.
A revisão da Lei – PL 10.887/2018
As propostas de revisão da lei partiram de uma comissão nomeada pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia. O trabalho resultou no Projeto de Lei 10.887/2018, que poderá entrar na pauta de votações em breve. O novo texto restringe as interpretações do que deve ser enquadrado como improbidade administrativa e revê também as punições. Para casos comprovados de corrupção, as penalidades serão na verdade elevadas.
Associações de procuradores têm manifestado a sua preocupação diante da possibilidade de revisão da Lei de Improbidade. Temem a abertura da porteira da impunidade. É um receio meritório. Será necessária toda a atenção para que as boas intenções de aperfeiçoar uma legislação que tem se mostrado problemática não descambem para o enfraquecimento dos instrumentos de combate aos delitos na administração pública.
Obstáculo à gestão pública
Sem desmerecer o combate à corrupção, é preciso contudo reconhecer que a Lei de Improbidade se transformou em um obstáculo ao bom funcionamento da gestão pública. Um promotor, tendo como base, por exemplo, uma simples notícia de jornal, pode abrir um processo contra um prefeito ou algum agente público, inclusive prestadores de serviços. Dezenas de prefeitos pelo país já foram afastados dessa maneira. Os processos podem até ser julgados improcedentes em instâncias superiores, mas, até lá, o dano político já foi feito.
E qual tem sido a reação dos políticos? Melhor pecar pela omissão do que pela ação, e, temendo represálias judiciais, deixam de tomar decisões por vezes estratégicas para os seus estados ou municípios. É o chamado “apagão das canetas”.
Além da interpretação vaga, outro problema está na aplicação de penas excessivas. Mais uma vez, não se trata de tolerar o delito, mas não faz sentido afastar um prefeito por causa de um eventual deslize burocrático cometido, muitas vezes, sem o seu conhecimento. As pessoas condenadas, além de perderem os cargos, são quase sempre condenadas à pena máxima prevista, que é o banimento da vida pública. Ficam inelegíveis a cargos políticos.
Com a revisão proposta, não haverá mais a possibilidade de condenar o gestor público por improbidade “culposa”, ou seja, quando não houve intenção. Será excluída também a punição baseada no dispositivo da “interpretação razoável”, que dá margem a critérios essencialmente subjetivos. Os promotores terão de prover indícios objetivos de dolo e da intenção. Deve ficar claro que houve dolo ao erário ou enriquecimento ilícito do gestor.
A Lei de Improbidade não deve ser um instrumento de perseguição a gestores públicos nem de criminalização da política. Da maneira como vem sendo aplicada, tornou-se mais um, dentre tantos, obstáculo a ser superado cotidianamente pelos gestores públicos honestos – e eles são a grande maioria. É bem-vinda, portanto, a revisão da atual legislação. O setor público precisa urgentemente ser mais ágil, flexível, eficiente e produtivo. Os bons não podem pagar pelos desvios dos maus.