A reforma da administração pública portuguesa permitiu ao país superar a profunda crise de 2008. Portugal ainda terá de passar por outras reformas para ganhar produtividade e reduzir o atraso em relação às nações mais avançadas do euro, mas os ajustes feitos até agora, com destaque para a nova administração pública, permitiram a retomada do crescimento do país. O Brasil deveria seguir esse exemplo.
Em 2008, Portugal entrou em uma recessão profunda. A crise financeira internacional deixou a mostra todas suas fragilidades nas finanças públicas. Um dos pontos mais vulneráveis do país era seu desproporcionalmente elevado gasto com o funcionalismo público. A análise detalhada revelou que havia abundância de cargos, carreiras e privilégios entre os servidores portugueses. Para completar, os salários eram, na média, bem superiores aos pagos na iniciativa privada. Portugal tinha, na realidade, uma das maiores divergências entre salários do setor público e do privado entre todos os países que utilizam o euro como moeda única.
Portugal foi submetido a um regime de choque: ou fazia reformas, e rápido, ou correria o risco de ser expulso da zona do euro. As consequências seriam o aprofundamento da recessão e do desemprego.
À beira do abismo, o governo português não teve outra alternativa e agiu. Aprovou uma sequência de medidas que envolveram um ajuste nas despesas do governo. A reforma mais profunda foi da administração pública. Era algo que o país vinha discutindo havia anos e anos – mas nunca com a devida urgência. Afinal é o tipo de reforma que, para ser bem-feita, significa comprar briga com a elite do funcionalismo.
Para permanecer no euro, o governo conseguiu o apoio da maior parte da opinião pública para a reforma administrativa. Mas a reviravolta só ocorreu por uma conjunção de fatores: risco de uma crise ainda mais severa, respaldo da opinião pública e pressão da chamada Troika – a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional.
Apesar da críticas de alguns setores, a austeridade fiscal trouxe resultados positivos. O país recuperou o crescimento econômico, e sua dívida entrou em trajetória declinante. Portugal passou a ser visto como exemplo de como é possível fazer reformas profundas, num espaço curto de tempo, e de como elas geram resultados positivos.
O desequilíbrio português
Antes dos ajustes, os portugueses tinham um cenário que lembra o Brasil de hoje. O peso das despesas com servidores saltou de 9,5% do PIB, em 1985, para 14,5% do PIB em 2005 (número similar ao do Brasil hoje). Mais da metade do orçamento federal era consumido pelo salário e pensões dos servidores.
Desde a adesão à União Europeia, os vencimentos do funcionalismo haviam subido 90%, enquanto no mesmo período os da iniciativa privada aumentaram 50%. Portugal tinha no bloco do euro a maior divergência entre salários públicos e privados: 45% em média, contra 27% na Espanha e 10% na Alemanha.
O arcabouço administrativo dos recursos humanos no governo também lembrava muito o que ocorre no Brasil: as promoções eram automáticas por tempo de carreira, a rigidez nas carreiras impedia a movimentação de servidores, faltava avaliação de desempenho.
A reforma em Portugal
Na reforma portuguesa, mais de mil carreiras específicas foram liquidadas e substituídas por três únicas: funções administrativas de nível básico, intermediário e superior. Isso trouxe flexibilidade para adaptar o quadro de trabalhadores a novas prioridades e enfraqueceu as guildas corporativistas. Fora as três carreiras gerais, restaram algumas específicas, como professores, médicos, dentistas e enfermeiros.
Além disso, a reforma seguiu três pilares básicos, como explica estudo recente do Banco Mundial:
- A taxa de reposição dos servidores de 2:1, ou seja, a cada dois aposentados apenas um novo é contratado;
- Fim das promoções automáticas por tempo de serviço;
- Possibilidade de entrada lateral, para que posições mais elevadas possam ser disputadas por pessoas de fora do serviço público.
Assim, o país seguiu um modelo parecido com o de outras nações europeias que já tinham passado por ajustes, como o Reino Unido. As regras ficaram também mais próximas das encontradas nas empresas privadas.
Os desequilíbrios no Brasil
O Brasil se assemelha, em muitos aspectos, à situação que havia em Portugal até pouco tempo atrás. Os salários do funcionalismo têm crescido, em média, acima da inflação, algo não encontrado no setor privado.
Em 2017, segundo o estudo do Banco Mundial, havia 299 diferentes carreiras no serviço público federal. O número de tabelas de progressão automática de cargos e salários passa da centena.
Uma aberração brasileira chama a atenção: os pagamentos por desempenho são estendidos a aposentados e pensionistas! Como alguém que já deixou o serviço seria beneficiado por um bônus cujo critério deveria ser a produtividade?
Há outras incongruências, como salários iniciais demasiadamente elevados em algumas categorias e a possibilidade de ascensão rápida na carreira. Por mérito? Não, por tempo de serviço. Os servidores de algumas carreiras chegam a ganhar o dobro do que ganhariam para atividades semelhantes no setor privado.
A reforma administrativa é urgente
O Brasil não pode adiar a reforma administrativa. Dela depende a boa gestão pública e também a solidez fiscal não apenas do governo federal, mas também de estados e municípios.
Projeções feitas pelo Banco Mundial mostram quais são os possíveis ganhos. Com medidas como a racionalização de contratação de funcionários, diminuição de reposição de servidores aposentados e contenção dos aumentos salariais, seria possível poupar até R$ 300 bilhões ao longo da próxima década.
Conclui o estudo: “Reformas voltadas à economia nas despesas de pessoal envolvem necessariamente uma melhor gestão de recursos humanos associada a ganhos de produtividade”.
É o que se espera da reforma administrativa que começa a tramitar no Congresso. O texto enviado pelo governo é tímido demais, porque não trata de todas as carreiras e também não valerá para os atuais servidores. As lideranças na Câmara e no Senado precisam demonstrar mais ousadia e ambição. Governadores e prefeitos também deveriam sair em defesa dessa reforma: é do total interesse deles, porque, do contrário, terão de administrar estados e municípios ingovernáveis — o que já é o caso para muitos.
Portugal ainda não superou totalmente a crise e ainda terá de passar por outras reformas para ganhar produtividade e reduzir o atraso em relação às nações mais avançadas do euro. Mas os ajustes feitos até agora, com destaque para a nova administração pública, permitiram a retomada do crescimento, como reconheceu a OCDE. O Brasil deveria seguir esse exemplo.