O desmatamento cresce com mais força onde não há titularidade definida. É o que comprovam os números sobre a derrubada de florestas nativas na Amazônia. A proteção dos biomas será muito mais efetiva quando forem resolvidas as disputas jurídicas em torno da titularidade de terras. Por isso é imperioso acelerar a tramitação do Projeto de Lei 2633/20, que estabelece critérios para a regularização fundiária.
Terra sem dono é a terra sem lei. O desmatamento cresce com mais força onde não há titularidade definida. É isso o que comprovam os números mais recentes sobre a derrubada de florestas nativas na Amazônia. Problema: um quarto do território da região não consta de nenhum registro. Em tese, os territórios devolutos deveriam estar sob a proteção do poder público. Na prática, a falta de repressão aos invasores, a falta de propriedade legal dificulta a penalização e, por fim, as constantes anistias aos delitos estimulam novos atos contra a preservação. Mantém-se assim um ciclo perverso de incentivos aos criminosos.
Em 1968, o economista Gary Becker publicou o artigo “Crime and Punishment: An Economic Approach”, no qual analisava a racionalidade por trás de ação de um criminoso. O bandido emprega uma lógica de custo e benefício, colocando na balança os ganhos previstos e as eventuais penas. Quanto maior a recompensa esperada proporcionalmente ao risco, maior o incentivo para a consumação de um delito. Becker, ganhador do Nobel de 1992, foi um dos fundadores da teoria da escolha racional.
Na Amazônia, impera a impunidade. As prisões são raras e o governo concede, de tempos em tempos, anistias para os infratores. O Ibama aplica multas com frequência, mas o próprio Instituto reconhece que uma fração mínima delas são efetivamente pagas. Segundo dados do próprio Instituto, citados pelo relatório de desmatamento do projeto Mapbiomas, menos de 1% das áreas desmatadas na Amazônia entre 2005 e 2018 foram repreendidas por multas, ações civis públicas e embargos.
Uma auditoria realizada pela Controladoria Geral da União (CGU), cujos resultados foram apresentados do ano passado, revelou que havia mais de 96 mil processos paralisados no Ibama, por razões burocráticas ou falta de digitalização dos documentos. O valor de multas a receber era da ordem de R$ 20,8 bilhões. Sem a digitalização, não se pode levar adiante os atos administrativos e as cobranças. Fica o multado pelo não multado.
Maior clareza, menor desmatamento
Quando há a propriedade claramente definida, ao menos existe a possibilidade de identificar os possíveis infratores. Tudo fica ainda mais complicado quando os atos ilícitos ocorrem nas chamadas áreas devolutas, cuja propriedade não foi estabelecida. São terras que estão sob a responsabilidade de proteção do governo federal ou dos Estados. Em termos práticos, faltam recursos para exercer a fiscalização e, portanto, essas propriedades têm atraído a ação de madeireiros ilegais, garimpeiros clandestinos e grileiros.
Em 2019, o desmatamento ocorrido nessas áreas representou 38% na derrubada total, apesar de representarem 24% do território da Amazônia. Os indicadores fazem parte de uma análise do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônica (Ipam), a partir das informações de satélites captadas pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Os dados de 2020 indicam uma elevação ainda mais intensa da atividade criminosa nas áreas devolutas: elas foram responsáveis por 46% do desmatamento ocorrido nos três primeiros meses do ano, contra 30% em igual período do ano passado.
No estudo Lawless land in no man’s land: The undesignated public forests in the Brazilian Amazon, publicado na revista Land Use Policy, pesquisadores fazem um balanço do desmatamento nas “terras sem lei” no período que vai de 1997 a 2018. Chegaram à estimativa de que foram perdidos 2,6 milhões de hectares de florestas nativas existentes em áreas sem dono. Cada hectare equivale a 10.000 metros quadrados, ou, aproximadamente, à área de um quarteirão. Os 2,6 milhões de hectares representam mais do que o dobro da superfície do município de São Paulo, ou pouco mais de 5% do total estimado em terrenos devolutos na Amazônia.
MP da Grilagem
No final do ano passado, o governo editou a Medida Provisória 910, logo chamada de “MP da Grilagem” pelos ambientalistas, porque amplia a anistia concedida aos invasores das terras públicas e sem dono na Amazônia. O perdão valeria para todos que comprovassem ocupação até 2018, e não 2011, como na regra anterior. A MP caducou, mas um projeto semelhante tramita no Congresso. Para os ambientalistas, esse tipo de medida apenas serve para alimentar novas invasões. É preciso, sim, regularizar as propriedades da Amazônia e dar fim a disputas jurídicas intermináveis, mas sem incentivar as ações criminosas.
Grandes extensões de terra sem dono, inexistência de fiscalização e patrulhamento frágil, multas que nunca serão pagas, anistias seguidas de anistias. Sem reverter essas mazelas estruturais, qualquer ação de combate às queimadas não passará de um paliativo com data de validade.
Boa governança
A boa notícia, de acordo com os pesquisadores, é que a boa governança dá resultados e se traduz em redução efetiva da ilegalidade. É o que mostram os resultados das iniciativas bem-feitas nesse sentido. Diz uma nota técnica do Ipam: “Quando há vontade política, há resultado efetivo na redução das queimadas e dos incêndios florestais. Essa é a primeira lição obtida pelo gerenciamento da crise do fogo de 2019”.
O combate aos criminosos não pode arrefecer, senão, como notou Gary Becker, diminui o risco da ação ilícita e aumenta a perspectiva de lucro. Terra sem dono e sem lei é campo fértil para a criminalidade. O governo parece ter acordado para as consequências e apertou o combate aos ilícitos. Os números recentes mostraram uma redução ritmo do desmatamento, mas, ainda assim, o volume de árvores derrubadas no último ano provavelmente será o maior em dez anos. A proteção das florestas será muito mais efetiva, porém, quando for resolvida de uma vez por todas as disputas jurídicas em torno da titularidade de terras. Onde não há arcabouço institucional mínimo, o crime viceja. Por isso é imperioso acelerar a tramitação do Projeto de Lei 2633/20, que estabelece critérios para a regularização fundiária.