Bolsonaro encarou a pandemia com descaso deliberado imaginando que assim pouparia a economia. Foi uma tragédia tripla: sanitária, econômica e social
O aumento na velocidade de aplicação de vacinas traz esperança de o País superar os dias mais difíceis da pandemia, mas a crise da Covid-19 ainda está longe do fim. O Brasil acaba de superar a marca de 500 mil vidas perdidas pela doença. Apenas nos Estados Unidos houve mais vítimas, em termos absolutos.
Nos Estados Unidos, a imunização está mais avançada, com o uso de vacinas de maior eficácia. Praticamente metade da população adulta recebeu as duas doses. Os resultados são promissores: o número médio de mortes diárias caiu abaixo de 300 na última semana.
No Brasil, pouco mais de 10% dos brasileiros receberam as duas doses de vacina. O relaxamento nas medidas de controle e a circulação de novas cepas poderão trazer uma terceira onda de contágios. A média de mortes diárias voltou a subir e permanece acima de 2.000.
A catástrofe brasileira foi a consequência de uma ação tardia na aquisição de vacinas e na falta de empenho do governo Jair Bolsonaro de coordenar uma campanha abrangente e coesa para o enfrentamento da pandemia. As fronteiras brasileiras ficaram abertas, o presidente fez pouco caso do uso de máscaras e das recomendações técnicas, foram promovidos tratamentos de eficácia duvidosa. Bolsonaro respondeu com o fígado, motivado pelos seus instintos populistas. Esteve mais preocupado em satisfazer os seguidores de sua seita messiânica do que em proteger a população — o que deve ser a primeira missão de um estadista.
Bolsonaro também agiu seguindo um cálculo eleitoral tacanho. Imaginou que o fechamento da economia derrubaria a sua popularidade. Se é verdade que a queda no PIB não foi tão intensa quanto se imaginava, é verdade também que, sem superação da crise sanitária, não há como haver uma normalização da atividade empresarial, e sem isso não haverá investimentos nem empregos.
Os números recentes da pesquisa do IBGE sobre o mercado de trabalho mostram o País na situação mais difícil da história recente. A taxa de desemprego atingiu 14,7% no primeiro trimestre do ano. É o pior resultado da série iniciada em 2012. Há quase 15 milhões de pessoas desocupadas. Há 6 milhões de desalentados, isto é, brasileiras e brasileiros que deixaram de procurar uma ocupação por causa da falta de perspectivas. No Nordeste, a região mais castigada pela falta de trabalho, a taxa de desemprego chegou a 18,6%. A subutilização da mão de obra, que é a soma dos desempregados mais o contingente que está trabalhando menos do que a sua disponibilidade, é da ordem de 30% da população brasileira em idade ativa. Quase um terço dos trabalhadores, portanto, enfrenta grandes dificuldades. É um estresse tremendo e adicional ao causado pela Covid-19.
A sequência de recessões tem feito o País retroagir nas conquistas sociais da década anterior. Há 27 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha de pobreza, de acordo com pesquisa do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas. O percentual de famílias na miséria retornou ao nível de 2011.
Na educação, a falta de aulas durante a pandemia terá consequências por muitos anos. Algumas já começam a ser vistas, com o aprofundamento das desigualdades no ensino entre os alunos da rede privada e da rede pública. Diversos estudos indicaram queda no aprendizado no último ano e aumento da probabilidade de evasão escolar. Um levantamento do governo de São Paulo revelou que o desempenho dos alunos recuou a patamares semelhantes aos de 16 anos atrás.
São todos números para não serem esquecidos. Lamentavelmente, são a consequência de duas cepas populistas — primeiro, a petista, e, agora, a bolsonarista, ainda mais trágica.
Superar essa crise multidimensional exigirá anos de trabalho e reformas. O passo emergencial, contudo, é centrar energia no combate à pandemia. O avanço da variante delta na Europa e, agora, nos Estados Unidos, tem elevado o número de contágios mesmo onde a vacinação está mais adiantada. No Brasil essa não é a cepa predominante, mas nada impede que seja em breve. Poderão surgir novas variantes. São alertas de que não é hora baixar a guarda. As sandices do presidente da República terão que ser combatidas tenazmente pela sociedade civil e pelas lideranças políticas com alguma dose de responsabilidade.