Governo e Congresso precisam trabalhar em uma solução estrutural para conter o aumento das despesas judiciais. Parcelamento oportunista vai arruinar ainda mais a credibilidade das finanças públicas, com impacto nos juros e no crescimento econômico
Paulo Guedes quer um canhão para transformar um meteoro em uma chuva de meteoritos. Essa foi a analogia que o ministro da Economia criou para defender a sua proposta de parcelamento no pagamento de precatórios, as dívidas judiciais que precisam ser pagas regularmente pelo governo.
O meteoro prestes a cair sobre o Orçamento do próximo ano é estimado em R$ 89,1 bilhões. O ministro disse que foi pego de surpresa pela dimensão do impacto, mas, segundo os especialistas em finanças públicas, a trajetória dessa despesa era conhecida. Órgãos de controle do governo já haviam dado sinais de alerta. Em 2021, o desembolso será de R$ 55 bilhões.
A razão do incômodo de Guedes é que os precatórios são considerados despesas sujeitas a ficarem sob o teto de gastos. Se o governo tiver mesmo que desembolsar os tais R$ 89,1 bilhões, será difícil encontrar espaço no Orçamento para cumprir algumas promessas de novas despesas para o ano eleitoral de 2022, entre elas a ampliação do Bolsa Família, com a criação de um novo programa social, o Auxílio Brasil. Os valores ainda não foram definidos, mas o reajuste previsto e a inclusão de mais pessoas no guarda-chuva assistencial deverão exigir pelo menos R$ 20 bilhões além dos atuais R$ 30 bilhões despendidos anualmente.
Até algumas semanas atrás, o Ministério da Economia estimava que haveria folga suficiente para ampliar o benefício social e bancar outras promessas, como um aumento na liberação de recursos para as emendas dos congressistas. Imaginava que a inflação ajudaria a inflar o caixa e acomodar todas as despesas sem burlar o limite do teto. Contas refeitas, entretanto, indicaram que a inflação ajuda de um lado, porém prejudica as contas públicas de outro, porque há pagamentos indexados aos índices de preços, entre eles as aposentadorias e pensões para quem ganha até um salário mínimo.
Guedes surgiu com a ideia de parcelar o pagamento das dívidas judiciais e apresentou a PEC dos Precatórios. Quem tem menos de R$ 66 mil a receber, tem o pagamento à vista, sem parcelamento. Valores superiores ficariam sujeitos a um escalonamento. Os chamados “superprecatórios”, acima de R$ 66 milhões, seriam pagos em até dez anos, com direito a correção monetária. Segundo as estimativas do governo, apenas o parcelamento dos “superprecatórios” vai criar uma folga fiscal de R$ 22,7 bilhões no próximo ano. O impacto total da PEC seria uma economia de R$ 33,5 bilhões.
Assim, por um passe de mágica, o governo encontraria mais de R$ 30 bilhões para ampliar os seus gastos no próximo ano — e sem ferir a lei do teto de gastos. Guedes pediu solidariedade do Congresso. Disse que, sem a aprovação da PEC, teria dificuldades para pagar os salários do funcionalismo no próximo ano. Afirmou ainda que faltariam até mesmo recursos para adquirir vacinas contra o vírus da Covid-19.
Foi difícil encontrar quem desse razão para o ministro. “Tem cheirinho de calote”, afirmou o economista Arminio Fraga, ex-presidente do Banco Central, em entrevista à Globo New. “Essas coisas vêm num pipeline jurídico que demora muito tempo, isso não aparece assim, da noite para o dia.” Outros analistas fizeram paralelos com as pedaladas de Dilma Rousseff. O Ministério da Economia, contudo, argumenta que 8.771 de um total de 264.717 precatórios seriam atingidos pelo parcelamento, o equivalente a 3,3%. O escalonamento traria mais previsibilidade à gestão dessas dívidas, sem comprometer investimentos.
O aumento dos gastos com precatórios é, de fato, um problema que vem ganhando maiores proporções a cada ano. É uma despesa que sobrecarrega não apenas as contas do governo federal, mas também as dos estados e dos municípios. Um estudo da Fundação Getúlio Vargas, feito em 2019, estimou que os governos estaduais e as prefeituras devem desembolsar mais de R$ 100 bilhões nos próximos anos. No que diz respeito ao governo federal, em 2010 as despesas com precatórios ficaram em R$ 13,9 bilhões, ou 11% do valor de despesas discricionárias. Em 2022, esses pagamentos deverão representar 68% dos gastos para livre alocação. “O precatório vai comer quase todos os investimentos. Esse aumento de R$ 34,4 bilhões equivale ao orçamento de 16 ministérios. É um valor muito grande e precisa ser discutido”, afirmou o secretário Bruno Funchal, em recente audiência na Câmara.
Com a crise da pandemia e a aproximação do ano eleitoral, é forte a pressão para que os pagamentos sejam todos escalonados. Desde 1988, já houve três emendas aprovadas para adiar o pagamento de precatórios. A de Guedes, se aprovada, seria a quarta. As dificuldades revelam que o País precisa discutir uma solução estrutural e de longo prazo para evitar a judicialização excessiva. Do contrário, emendas constitucionais serão apenas paliativos oportunistas de fundo eleitoreiro. O parcelamento apenas adiará o problema.
A proposta de Guedes sofre resistência no Congresso e ideias alternativas começam a ser discutidas, como retirar as dívidas judiciais dos limites determinados pelo teto de gastos. Outra sugestão foi transformar precatórios em créditos a serem usados nas privatizações.
Ainda não se sabe o desfecho dessa nova frente de batalha do governo, mas seus efeitos já foram sentidos. Caíram como um meteorito no mercado financeiro. A possibilidade de burlar o teto de gastos, a principal âncora fiscal do País, reduz ainda mais a credibilidade do governo. Isso significa juros em alta, dólar mais caro e menos crescimento econômico. Os juros pagos pelos títulos públicos mais longos voltaram a pagar rendimentos acima de 10% ao ano. A rentabilidade em alta da renda fixa representa menos interesse pelas ações. Um estudo do banco Inter indicou que o aumento de 1 ponto percentual na taxa real de juros (já descontada a inflação) pode reduzir em até 12% a avaliação das empresas brasileiras listadas na Bolsa de São Paulo.
“Vamos encontrar uma solução que respeite o teto de gastos”, afirmou ontem o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). “Não haverá calote no Brasil.” É o que se espera. Enquanto não se encontra uma saída bem estruturada, o País já está pagando o preço dessa mais uma crise motivada por indefinição política e incerteza jurídica.