A privatização é necessária e inevitável. Sem isso, Brasil continuará pagando o altíssimo preço de não ter água tratada nem esgoto.
Sem ilusões, por favor. Quanto ao saneamento básico, os países que se comparam com o Brasil são potências da estirpe da Argélia, Eritréia, Lesoto, Benin e o Laos. É uma situação inaceitável que reflete escolhas vergonhosas de gerações de brasileiros com poder de decisão sobre os rumos do país. Roberto Campos disse que “o subdesenvolvimento não se improvisa. Se constrói”. A opção histórica pelo descaso com o saneamento básico no Brasil é uma construção política, administrativa, cultural e filosófica que, em sua essência, revela nossa vocação para esconder o que nos desagrada, negacear decisões cruciais para o funcionamento sadio da sociedade e adiar o quanto se puder as obras essenciais à nossa emancipação civilizatória.
Milhas e milhas até universalizar o saneamento básico
Faltam redes e tratamento de esgotos em mais da metade dos bairros das cidades brasileiras. Não apenas nas periferias, o que seria aceitável para nosso eterno descaso com aqueles que “moram onde não mora ninguém”, na cortante definição do sambista Agepê. Faltam redes e tratamento de esgoto também em bairros elegantes de muitas das metrópoles brasileiras. São Paulo, capital do estado mais rico do Brasil, é cortada por um esgoto céu aberto disfarçado visualmente por coberturas verdes e ciclovias, mas denunciado pelo odor que se atingisse a visão – e não apenas o olfato manteria as avenidas marginais dos rios Tietê e Pinheiros envoltas em um permanente nevoeiro negro.
Quando, a duras penas, no governo Lula, tentou-se acordar para o tamanho desse problema corria o ano de 2005. Dois anos mais tarde, em 2007, o IBGE indicava que 53% dos domicílios brasileiros ainda não tinham acesso a redes de esgoto. Oito anos depois, em 2015, as estatísticas mostravam que 34,6% dos brasileiros viviam em áreas sem acesso à redes de esgoto. A meta de universalizar o acesso, fixada para o ano de 2033, está longe de ser atingida. Muito longe. Ela está meio trilhão de reais de investimento distante. E não será atingida nunca se depender apenas de investimentos estatais. Entra em cena o investimento privado.
Caminho aberto para a iniciativa privada
Se já é difícil convencer homens públicos a investir em saneamento, como motivar o dinheiro privado? Depois de tentativas fracassadas, o Congresso Nacional, em comum acordo com parte considerável do setor público e do privado, parece ter chegado a um ponto de entendimento e a um novo conjunto de regras para o setor. Esse conjunto de regras, se vier mesmo a se efetivar, reabre a possibilidade de levar redes e tratamento de esgoto a 100% dos lares brasileiros até 2033. O Brasil se igualaria nesse campo essencial aos países mais avançados da OCDE, a elite mundial em padrão de qualidade de vida, clube privado para o qual recebemos um convite de participação de seu sócio mais destacado, os Estados Unidos.
Desafio um: articulação política no Congresso
As regras em tramitação no Congresso Nacional são uniformizadas para todo o Brasil. Esse passo essencial rumo a um futuro menos hostil à maioria dos brasileiros depende agora da capacidade de articulação política do governo junto aos deputados e senadores. Com a Reforma da Previdência ocupando o primeiro plano das ações do governo no Congresso, a MP do Saneamento vai exigir uma capacidade de jogar com dois malabares ao mesmo tempo. Desafio e tanto. Não há garantia de que o governo seja hábil o bastante para manter no ar da política um único malabar — quanto mais dois. Por isso é preciso que se façam sentir com força em Brasília as pressões pelo aprimoramento das normas legais que podem nos levar no campo do saneamento básico a níveis civilizados.
Desafio dois: regulação única
Vencida a batalha parlamentar, começa outra de igual relevância: a normatização da MP por leis infraconstitucionais e pelas agências reguladoras. Por mais adequada que seja, uma MP pode ser manietada nessa fase crucial de sua implantação no mundo real. No caso específico da MP do Saneamento, a regulação é, na melhor das hipóteses, um labirinto e, para alguns, um pântano. Existem 49 agências reguladoras responsáveis pela regulação da questão do saneamento básico em 2.906 municípios brasileiros. Para piorar a situação, nos demais municípios o que preocupa não é o excesso de regulação, mas sua ausência total. Em 48% dos municípios brasileiros não existe qualquer tipo de regulação. Sem um Plano Municipal de Saneamento Básico devidamente aprovado, o município não pode recorrer à iniciativa privada, o que, na prática, deixa quase metade da população brasileira carente de uma solução fora dos benefícios evidentes da MP do Saneamento. É aí que mora o perigo. Por isso, a padronização das regras dos contratos de concessão é determinante. Esse será o papel mais importante da Agência Nacional de Águas (ANA).
A agência, que tinha importância marginal se comparada a uma Anvisa ou Anac, será a grande responsável por ditar as normas gerais de saneamento a serem seguidas por todos os municípios do Brasil. É o que efetivamente abrirá as portas para a segurança jurídica, tão cara ao investimento do setor privado no País.
Desafio três: governança e privatização
Se até agora as concessionárias estaduais correram soltas, isso acabou. Não há mais renovação automática de contratos. Ponto. As renovações serão reguladas pela ANA e concedidas caso a caso por cada município, ou por uma articulação regional entre os mesmos.
Além de melhorar o serviço, gerar emprego, aumentar renda e trazer dinheiro para os Estados, a privatização também será um caminho eficiente para a construção de uma governança interfederativa, que reúna interesses e traga benefícios a todos os envolvidos.
“A administração estadual terá a responsabilidade de delimitar microrregiões que agrupem municípios para prestação e regulação conjunta dos serviços” Jerson Kelman
Mais harmonia, maior estabilidade nas regras, maior segurança para investidores. A privatização é necessária e inevitável. Ela irá apoiar a recuperação fiscal dos estados, movimentar a economia e, quiçá, retirar o Brasil da Idade Média, sanitariamente falando.