Como pensar em valores democráticos diante de tamanha desigualdade, quando a parte de cima é tão rica e a parte de baixo é miserável? Pouco fizemos, sobretudo na educação, para consolidar um valor universal que precisa ser institucionalizado
Artigo de Humberto Dantas
O texto da semana passada foi uma provocação. Algo ao estilo “aceita que dói menos” a nos sugerir que depois dos anos 80, em que parcelas expressivas da sociedade lutaram tanto para pensarmos uma democracia, pouco fizemos em termos formais, sobretudo na educação, para nos firmarmos em torno de um valor universal que precisa ser institucionalizado legal e legitimamente na realidade.
Os comentários que recebi sobre o texto foram no campo socioeconômico. Como pensar em democracia diante de tamanha desigualdade, principalmente quando a parte de cima é tão rica e a parte de baixo é miserável? Faz sentido, e não faltam contribuições de clássicos do pensamento político sobre isso. Lembro, facilmente, de justificativas de Max Weber para certos princípios democráticos que não dariam certo, em qualquer sociedade, diante de dissimilitudes sociais e econômicas agudas. Isso representaria, para o caso brasileiro, o fim da ideia de que podemos ser uma democracia no papel, na urna, mas principalmente nas mentes e valores? Tenho dúvidas. Legalmente ainda somos, mas e legitimamente? A resposta aqui vai depender do seu humor e das suas sensações a respeito do tema.
Pois bem. Quero continuar provocando. E, para tanto, revisitei textos que analisaram as eleições de 1989. Parti do seguinte pressuposto: se os anos 80 foram marcados pela conquista efetiva de tudo o que temos em termos de democracia, se foi a era da participação, da pressão popular, da reconquista do voto etc.: o que tivemos no pleito presidencial, de volta à realidade quase 30 depois das eleições diretas de 1961, que coroou aquele período de conquistas?
A eleição de Fernando Collor de Mello não foi uma catástrofe apenas pelo que gerou de resultado até 1992. Um governo considerado corrupto, errático, vaidoso, que tomou algumas decisões econômicas catastróficas para muitos é o que menos importa aqui. O impeachment existiu para tentar corrigir isso, mesmo sendo considerado, sempre, um processo político capaz de gerar sentimentos de injustiça. Mas não fosse daquele jeito, a urna o teria varrido do poder tranquilamente em 1994. Não é sobre isso que estou falando.
Collor foi eleito em 1989 na campanha que inaugurou algo até então inédito no Brasil, de acordo com análises sobre o período: o uso consciente, racional e preciso de técnicas avançadas, para os padrões da época, de marketing político. Algo que nos dá a chance de comparação com a capacidade que Bolsonaro teve de se lançar nas redes sociais de forma infinitamente mais ousada e bem-sucedida que seus rivais no pleito de 2018. Em resumo: foi assim que um homem desconhecido do Brasil, que foi ignorado na antessala de Mario Covas no Senado quando lhe pediria para ser seu vice, filiado a um partido nanico, se tornou presidente.
Mas de novo: isso, em tese, pouco afeta a democracia. Mostra que ela oferece oportunidades até mesmo para os menos cotados num instante inicial. As técnicas de marketing são ferramentas que, dentro da lei, podem ajudar e não dizimam valores democráticos. Essa discussão é outra, e merecerá atenção em textos futuros, sobretudo porque podemos explorar os limites ultrapassados por Collor. Mas não é sobre isso que estou falando.
Aquela vitória foi estratégica. Precisa. Exata. O que se construiu foi um personagem perfeito para o instante do país. E o que ele dizia? Que servidores públicos ganhavam muito e trabalhavam pouco, que marajás expropriavam o país. Que o descamisado sofria sem ser observado pelo poder público. Para o universo popular quantitativo, foi isso o que Collor afirmou para ganhar. Nada de defesa da democracia. Mas precisava? Depende.
Enquanto isso, mais de 20 adversários se revezavam em três outras esferas. Um primeiro universo é composto por uma horda de insignificantes tentando aparecer. Collor seria facilmente um deles. Collor largou no pelotão de populares da maratona, mas tinha estratégia profissional para vencer a corrida.
No segundo bloco um bando de “filhotes da ditadura”, para utilizar termo de Leonel Brizola, tentando dizer que o país havia crescido com os militares e podia voltar a crescer – destaque para Maluf (PDS) e Aureliano Chaves (PFL). Nos instantes mais tensos, se desviavam das acusações de envolvimento com o autoritarismo, e diziam que o certo era olhar para frente e construir um país.
No terceiro segmento, dois subgrupos: uma esquerda mais estruturada com candidaturas do PT, do PDT e do PCB, sendo que os dois primeiros rivalizaram a ida ao segundo turno. Lula (PT) venceu Brizola (PDT), mostrando que desde então esse viés ideológico, à época infinitamente mais ácido, tinha espaço. Ao centro até a direita, um grupo falando em democracia, cidadania e princípios ideológicos como conceitos pouco afeitos à realidade concreta, ou mesmo tentando empurrar, em parte do conjunto, o devaneio liberal para uma nação que até hoje é “estado dependente” até o último fio de cabelo. Aqui estão: Ulysses (PMDB), Covas (PSDB), Afonso Camargo (PTB), Caiado (PSD) e Afif (PL). Ulysses (na foto acima, no ato da promulgação da Constituição de 1988) e Covas falavam muito em cidadania e democracia, Camargo em vale transporte como direito garantido por ele como constituinte, Afif e Caiado eram mais liberais. O tucano foi o melhor e ficou em quarto.
Vamos aos resultados: o primeiro grupo, sem salvar dele figuras merecedoras de destaque como Fernando Gabeira, somou 2,5% dos votos. O segundo grupo acumulou menos de 10%. O terceiro grupo vou dividir entre a esquerda de Lula (PT), Brizola (PDT) e Freire (PCB) com 34% dos votos, e a centro-direita acima exposta com seus 25%. Sobram cerca de 30 pontos, aqueles que levaram Collor, sozinho, para o segundo turno.
Aqui está o ponto central do texto: o discurso ideológico, padronizando a política ao sabor de quem vive sonhando com a democracia e seus debates complexos, teve um quarto dos votos no primeiro turno. Se somarmos a esquerda, que naquele instante ainda tinha radicalidades vocalizadas principalmente por Lula, chegaremos a 59%. Sem o PT ácido ficamos com 42%. No segundo turno, deu Collor – que talvez só tivesse força para ganhar da esquerda. Depois de 10 anos de luta, quem venceu o pleito foi o sujeito que nada falou sobre a importância da democracia. Precisava? Naquele instante eu poderia defender que sim, e entendo se você defender que não. Mas com base naquele resultado, e a partir dele: mais do que nunca. É desde os anos 80, mas sobretudo a partir do que vimos no pleito de 1989, que deveríamos ter feito algo para educar para a democracia como algo necessário no longo prazo. O Brasil sofria com a “década economicamente perdida” sem se dar conta do que havia conquistado. E se ainda não temos a dimensão do que construímos, efetivamente existe real possibilidade de nos perdermos – se é que um dia, efetivamente e em larga escala, nos encontramos.
Humberto Dantas é doutor em ciência política pela USP e pós-doutor em administração pública pela FGV-SP. Coordenador dos programas de educação do Centro de Liderança Pública – CLP.