Texto apresentado pelo relator Arthur Maia traz avanços em relação ao projeto original do governo, mas texto mantém privilégios corporativos para juízes e promotores, além de trazer novos benefícios para policiais
A retomada na economia brasileira está ainda mais frágil do que se imaginava. Foi o que indicaram os números divulgados ontem pelo IBGE, mostrando um recuo de 0,1% da atividade no segundo trimestre do ano. O cenário adiante não é promissor. O aumento da inflação e dos juros vai conter a recuperação pós-pandemia. Haverá também o impacto negativo da crise hídrica e do cada vez mais provável racionamento de energia.
A aprovação de reformas estruturais que aprimorem o funcionamento do setor público pode ajudar na superação da crise. Nesse sentido, trata-se de uma boa notícia a perspectiva de votação da reforma administrativa. Mas o projeto precisa ainda ser aperfeiçoado — e muito — para alcançar os objetivos esperados de uma boa reforma.
Na terça-feira (31 de agosto), o deputado Arthur Maia (DEM-BA), relator da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 32/20, que trata da reforma administrativa, apresentou o seu parecer. O texto substitutivo trouxe alguns avanços em relação à tímida proposta original apresentada pelo governo. Mas houve uma grande omissão, além da inclusão de dois “jabutis”.
A omissão
As associações e sindicatos dos juízes e dos promotores venceram: as carreiras do Poder Judiciário e do Ministério Público ficaram de fora do texto final apresentado pelo relator. Isso significa que uma boa parcela da elite do funcionalismo não será alcançada pelas novas regras, caso o projeto seja aprovado na versão de Maia, negociada, até o último momento, com o Planalto e com o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Assim, magistrados, procuradores e promotores poderão continuar se valendo de benefícios como promoções por tempo de carreira, férias de 60 dias e outras regalias que deverão ser extintas para o restante do funcionalismo.
A PEC encaminhada pelo governo tratava apenas dos funcionários do Executivo, mas havia a esperança de que o relator incluísse os demais poderes em seu parecer. Os militares também ficaram de fora do projeto, mas já era algo previsto. Como ocorreu na reforma previdenciária, deverão ter regras próprias.
Lideranças da Frente Parlamentar da Reforma Administrativa e outros deputados defensores de um texto mais abrangente já afirmaram que vão apresentar emendas para incluir os demais poderes no texto a ser levado à votação. De acordo com estimativas dos parlamentares, a economia com o corte de benefícios e privilégios pode trazer uma economia de R$ 45 bilhões ao ano.
Os “jabutis”
Os chamados “jabutis” são a inclusão de emendas a projetos legislativos que muito pouco ou nada têm a ver com o escopo do texto original. Há dois deles no parecer apresentado por Arthur Maia. Ambos foram colocados para atender demandas das corporações das polícias e da base bolsonarista.
No primeiro deles, o diretor-geral da Polícia Federal passará a ter direito a foro privilegiado. Segundo Maia, delegados da corporação solicitaram essa inclusão para proteger o comandante da PF de eventuais interferências. Independentemente do mérito do pleito, o jabuti não deveria ter sido incluído na PEC 32.
O segundo jabuti amplia o rol de beneficiários de pensões por morte concedidas a profissionais da segurança pública, incluindo agentes penitenciários e socioeducadores. O artigo, da maneira como ficou redigido, dá grande abertura de interpretação para os estados decidirem quando pagar o benefício.
Havia um outro jabuti dos bem grandes no texto, concebido na medida para satisfazer os bolsonaristas Um trecho do parecer que chegou a circular na noite de terça-feira trazia um artigo que assegurava ao diretor-geral da Polícia Federal a prerrogativa de escolher todos os delegados encarregados de inquéritos em todo o País. Se assim fosse, seria barrada a possibilidade de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) escolherem delegados para conduzir investigações.
O jabuti acabou caindo, mas seu alvo era certo: enfraquecer investigações contra o presidente, ministros e integrantes do governo. Bolsonaro é hoje alvo de três inquéritos abertos por ordem do ministro Alexandre de Moraes, em casos envolvendo possíveis crimes eleitorais e contra as instituições democráticas. A delegada encarregada dos casos foi indicada por Moraes — fora, portanto, da influência do presidente e do atual diretor da PF.
Estabilidade e avaliação
Atualmente, todos os servidores públicos contam com a prerrogativa da estabilidade. As demissões são raras. Só podem ocorrer em casos de infração disciplinar ou depois de uma sentença judicial definitiva. A possibilidade de corte em razão de mau desempenho está prevista na Constituição, mas nunca foi regulamentada. Há aberrações, como o caso de magistrados que foram afastados por crimes e desvios disciplinares, mas ainda assim continuam recebendo os salários.
Agora, com a PEC, a estabilidade será mantida, inclusive para os novos funcionários. Mas a promessa é de finalmente haver a regulamentação da avaliação de desempenho. É algo a ser visto como funcionará na prática. Pela proposta em discussão, o funcionário ficará sujeito a demissão se obtiver três avaliações negativas consecutivas ou cinco intercaladas. Apenas depois disso seria aberto o processo administrativo que poderá levar ao desligamento.
Há outro ponto a ser comemorado: servidores em cargos considerados obsoletos ou desnecessários também poderão ser cortados, com direito a indenização proporcional ao tempo de serviço. São funções como afinadores de instrumentos, seringueiros, discotecários e técnicos e móveis e esquadrias.
Regras para novos servidores
O texto traz alguns pontos positivos, mas que deverão valer apenas para os novos servidores. Acaba com as promoções por tempo de serviço e a venda a incorporação aos salários de benefícios temporários. O Centro de Liderança Pública, em análise sobre os aspectos positivos e negativos do novo texto, defende que a vedação de benefícios deveria ser válida também para os atuais servidores, incluindo aí juízes, promotores e militares.
Outra boa novidade da PEC é a possibilidade de redução dos vencimentos dos servidores em até 25%, com a diminuição da carga horária de trabalho. Foi o que aconteceu com os salários na iniciativa privada no ano passado como resposta à pandemia, mas, no serviço público, os salários se mantiveram inalterados. Se houvesse a possibilidade de diminuição temporária dos vencimentos haveria mais recursos disponíveis para aplicar em áreas prioritárias durante crises, por exemplo. Mas a possibilidade de redução valerá apenas para cargos que não sejam considerados de carreiras típicas de estado — algo ainda a ser definido.
Lobbies e pressões
O texto apresentado pelo relator Arthur Maia deverá ser apreciado pelos deputados da comissão especial no dia 14 ou no dia 15 de setembro. Depois, o projeto vai a plenário. Por se tratar de uma emenda constitucional, a sua aprovação exige 308 votos a favor (três quintos do total), em duas sessões. Se aprovada, segue para o Senado, onde também precisa ser votada em dois turnos e voto favorável de ao menos 49 senadores.
Os lobbies vão jogar pesado nos próximos dias. Na véspera da divulgação do parecer de Arthur Maia, foi intensa a movimentação dos sindicatos dos juízes e promotores. A Frente Associativa da Magistratura e do Ministério Público (Frentas), que reúne diversas associações, divulgou uma nota na qual afirma: “A inclusão das referidas classes no texto da reforma resvala em uma miríade de inconstitucionalidades”. Haveria, dizem, prejuízo de autonomia de poderes. É o eterno argumento corporativo usado para consolidar privilégios indefensáveis.
A reação demonstra os obstáculos adiante para aprovar essa reforma e o elevado risco de ela ser desvirtuada, sobretudo sem a liderança de um governo empenhado no projeto.
Haverá muita pressão sobre os parlamentares para rever pontos do projeto. Os defensores de uma reforma administrativa (Cartilha Reforma Administrativa) ampla precisam derrubar os jabutis apensados de última hora ao texto e enfrentar as corporações que representam a elite do funcionalismo.