Sucesso das metas de universalização de água e esgoto até 2033 dependerá da atuação dos estados na formação de blocos regionais para atender os pequenos municípios — hoje os mais carentes por esses serviços
Artigo de Luana Tavares e Andrei Covatariu
No último dia 31 de agosto, o CLP – Centro de Liderança Pública lançou o “Guia do Saneamento“, uma iniciativa em parceria com o Trata Brasil, a Confederação Nacional da Indústria (CNI), a Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon), o Instituto Humanize, além de diversas outras instituições públicas e privadas que atuam na temática do Saneamento no Brasil.
O lançamento foi feito em uma live com a participação de gestores municipais, estaduais e diversos especialistas no assunto. Durante o encontro, o prefeito de Maceió, João Henrique Caldas, expressou preocupação com a titularidade do saneamento básico e a falta de autoridade de municípios em blocos regionais que abarcam tanto cidades pequenas de 10 mil habitantes, por exemplo, como grandes capitais, com milhões de habitantes. Na sua visão, a regionalização tira dos municípios mais populosos a capacidade de tomar decisões de forma autônoma sobre prioridades e investimentos.
A fala do prefeito reflete um dos principais desafios na implementação do novo marco e ao mesmo tempo revela o paradigma que está no cerne de um dos grandes objetivos da nova lei: o da equidade e do benefício social. Além disso, a uniformização e modernização dos contratos, com regras claras e bem amarradas em relação às alterações tarifárias, também são partes essenciais desse debate.
Resistências na formação de blocos regionais
A meta central de universalização do saneamento até 2033, prevista pela nova regulamentação, está amparada no conceito de equidade, com a regionalização e atração de investimentos em escala para aumento de eficiência. No Brasil, as pequenas cidades são as que mais sofrem com a falta de saneamento: 33% delas não têm esgoto tratado, contra 73% de cobertura nas cidades maiores. Porém, no geral pagam o mesmo valor pelos serviços ofertados. Isso acontece pois os municípios menores não têm escala nem capacidade financeira e técnica para prover serviços com maior qualidade e menor custo à população.
Com a formação de blocos prevista no novo marco, cidades pequenas, médias e grandes, em conjunto com os estados, terão acesso ao mesmo tipo de serviço a partir das negociações regionais. Segundo Daniel Antonio Narzetti, coordenador-geral de saneamento da Secretaria de Desenvolvimento da Infraestrutura do governo federal, esse princípio, previsto propositalmente no novo marco, “visa colocar toda a população no mesmo patamar, de modo a corrigir estas desigualdades e tornar possível atingir a meta de universalização”. Por outro lado, a preocupação dos gestores dos municípios mais populosos está em ter que arcar com uma tarifa maior para subsidiar municípios menores — e em como explicar isso para os moradores.
Para fazer frente a esse dilema, será preciso que os estados entrem em ação e estabeleçam, em suas leis sobre criação das unidades regionais de saneamento, regras claras para os ajustes tarifários, mas levando-se em consideração que a participação dos municípios maiores representará um “subsídio cruzado” necessário para alcançar as metas de universalização. Apesar de resistências na adesão por parte de alguns municípios, como Maceió e Porto Alegre, atualmente 14 estados já têm leis publicadas com os blocos regionais e 6 estão em fase avançada de aprovação.
Alguns estados já avançaram com os leilões para concessão de serviços de saneamento (Alagoas, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul e Rio de Janeiro), com um total superior a R$ 60 bilhões arrecadados. São sinais de impacto positivo do novo marco. Consórcios regionais já são uma solução antiga no mundo e no Brasil, que provaram a sua relevância em diversas áreas. Se queremos ter mais chances de atingir a meta de 2033, a permanência das cidades grandes nos blocos é fundamental.
Modelagem contratual e regras de revisão tarifária
Outro grande desafio de implementação que está sendo discutido é a modelagem dos novos contratos e regras para revisão tarifária futura. A Agência Nacional de Águas (ANA) está encarregada da uniformização desse arcabouço e busca a criação de mecanismos mais modernos para evitar consequências negativas como o aumento desproporcional nas tarifas para o cidadão e impactos na continuidade dos serviços.
Os contratos terão metas de investimento e resultados que poderão ser reajustadas de acordo com os efeitos esperados – tais como, o consumo, crescimento da população e disponibilidade de recursos hídricos. Os blocos regionais, após formados, poderão contar com o apoio técnico e financeiro do governo federal por meio dos bancos de desenvolvimento e instituições de fomento, como o BNDES e a Caixa Econômica Federal. Para ter acesso a esses recursos, os municípios devem aderir à formação dos blocos regionais, do contrário, tal apoio será comprometido.
Desde o início da discussão da nova legislação, o reajuste da tarifa de água e esgoto foi motivo de muita desconfiança por aqueles que não defendem a entrada do setor privado no setor do saneamento ou que entendem que pelo alto investimento necessário a conta, com o tempo, sobrará para a população. A verdade é que somente saberemos com certeza os impactos na tarifa a partir dos avanços na modelagem dos contratos, definição das regras de investimento e, especialmente, a eficiência das empresas provedoras.
Na Argentina, por exemplo, preços mantidos muito abaixo da realidade levaram ao sucateamento da AySA. Para recuperação, a empresa teve que fazer em 2016 um reajuste de quase 300%. No Brasil, está claro que, dado o tamanho do investimento necessário para a universalização, os subsídios cruzados e outros investimentos sociais públicos serão necessários no médio e longo prazo, especialmente para subsidiar regiões economicamente desfavorecidas — nos moldes da atual tarifa social da energia elétrica.
Experiência Internacional
Feita de maneira adequada, a privatização do saneamento não cria vencedores nem perdedores. Ele cria valor agregado, crescimento econômico e desenvolvimento sustentável para indivíduos e empresas, comunidades e setores econômicos. Embora os processos de privatização sejam altamente influenciados por diferentes contextos sociais e econômicos, aprender com as melhores práticas e com os maus exemplos é fundamental para aproveitar a lição aprendida e evitar outros problemas secundários de longa duração.
No Reino Unido, houve reajuste das tarifas de água após a privatização, mas em contrapartida houve aumento dos investimentos e avanço na qualidade do serviço. Para efeito de comparação, nos primeiros 6 anos após a privatização, as empresas de água investiram £ 17 bilhões, em comparação com apenas £ 9,3 bilhões nos seis anos anteriores à privatização.
Em Manila, capital das Filipinas, temos outro bom exemplo. Entre 1997 e 2009, a privatização contribuiu para que o acesso à água potável aumentasse de 49% para 94% da população. Ao mesmo tempo, os níveis de perdas de água diminuíram significativamente, de 63% para 16%, entre 1999 e 2009.
Já a Colômbia optou, no final da década de 1990, por parcerias público-privadas em regiões com infraestrutura hídrica precária. O governo central apoiou e financiou diversos subsídios ao investimento, para evitar um aumento nas tarifas finais. Como resultado, tanto o acesso à água quanto à cobertura de esgoto melhoraram consistentemente.
Por outro lado, o caso da cidade de Cochabamba, na Bolívia, é um cenário a ser evitado. A comunicação deficiente com todas as partes interessadas (incluindo a população), a falta de experiência em processos de modelagem regulatória e a governança local inadequada são alguns dos ingredientes desse famoso fracasso. O projeto teve como objetivo privatizar o abastecimento de água municipal, mas resultou em uma série de protestos públicos que ficaram conhecidos como as Guerras da Água de Cochabamba, em reação ao aumento das tarifas.
Não há bala de prata
Levando em consideração o momento do Brasil em relação à implementação do novo modelo regulatório e alguns casos internacionais, fica claro que não há bala de prata para o sucesso no processo de entrada do setor privado na área de saneamento. Para evitar o fracasso, o processo precisa ser bem preparado, comunicado de forma transparente a todos os atores envolvidos e executado de forma meticulosa — considerando as amarrações regulatórias e também o impacto financeiro para a população.
Temos a chance de fazer com que o nosso caso seja positivo e sirva de exemplo mundial na universalização de um serviço tão básico para a população. Para isso será necessária a colaboração de toda a sociedade, em especial dos nossos governantes, responsáveis por dar amparo aos mecanismos que permitam a entrada de capital privado com segurança jurídica e assegurem a qualidade na prestação dos serviços. Um desvio dessa receita pode transformar uma iniciativa de melhoria da eficiência em uma fonte de conflitos sociais e econômicos.
Como parte da série de Prioridades de Mudança Climática do Brasil – desenvolvida pelo Instituto CLP e VirtuNews – estamos iniciando nossas conversas sobre clima, sustentabilidade e energia com foco nas questões relacionadas à água, um elemento crítico para a vida e o crescimento econômico.
Luana Tavares passou os últimos 15 anos se dedicando ao setor de impacto social no Brasil, trabalhando com diversas organizações sem fins lucrativos com foco no fortalecimento da democracia e eficácia do Estado. Entre 2013 e 2020, dirigiu uma das organizações pioneiras e mais relevantes neste campo chamada CLP – Centro de Liderança Pública, que desde 2008 formou mais de 8.000 líderes públicos em todo o Brasil e está informando e engajando a sociedade na defesa de uma agenda nacional estrutural com o Congresso Nacional. Luana também é conselheira do Vetor Brasil e do Poder do Voto – duas organizações de impacto social focadas em aumentar a capacidade do Estado por meio de uma melhor gestão de pessoas e fortalecimento da participação cívica, respectivamente. Luana é graduada em publicidade, possui MBA – Mestre em Administração de Empresas (Fundação Getúlio Vargas – FGVSP) e possui duas especializações internacionais, uma em gestão pública e outra em desenvolvimento de liderança, na Harvard Kennedy School e na Oxford University. Atualmente, está concluindo o Mestrado em Políticas Públicas (MPP) na Blavatnik School of Government – Oxford University e desenvolvendo seu projeto de verão (Summer Project) com o IEPS – Instituto de Estudos para Políticas de Saúde.
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Andrei Covatariu é Pesquisador Associado Sênior do Grupo de Política Energética e especialista da Força-Tarefa sobre Digitalização em Energia da Comissão Econômica das Nações Unidas para a Europa (UNECE). Andrei foi Chefe de Relações Públicas da Enel Romênia (2019-2020), anteriormente ocupando vários cargos dentro da empresa de serviços públicos (2014-2019). Ele também foi membro do Conselho da comunidade FEL-100 (World Energy Council, Londres), um bolsista não residente em 2020 no Middle East Institute (Washington DC) e um 2021 GYCN Climate Ambassador (uma iniciativa do Grupo Banco Mundial). Andrei é bacharel e mestre em Engenharia Nuclear (Universidade Politécnica de Bucareste) e mestre em Administração de Empresas (Academia de Estudos Econômicos de Bucareste). Ele está atualmente finalizando um mestrado em Políticas Públicas (MPP) na Blavatnik School of Government, University of Oxford, com um Summer Project realizado no Belfer Center for Science and International Affairs – Gerenciando o Projeto Atom da Harvard Kennedy School.