O homem que imagina que uma mulher não atingiu seu sucesso porque lhe faltou competência precisa ter a capacidade de perceber que seu caminho, por mais difícil que tenha sido, foi infinitamente mais fácil a partir da “sorte” que ele teve de não ter nascido mulher
Artigo de Humberto Dantas
Na semana passada, tratamos aqui do desafio da inclusão de mulheres no universo da democracia representativa brasileira. No domingo, lemos a notícia de que o parlamento da Islândia deixou de ter a anunciada, e comemorada, maioria feminina após uma recontagem de votos. O país com menos de 400 mil habitantes e 63 cadeiras no Legislativo chegou a anunciar a predominância de mulheres, mas voltou atrás. Isso não impediu que saltasse das atuais 24 para 30 representantes, o que parece positivo e representará cerca de 47% do total de vagas.
A exclusão de mulheres do universo da política não é um fenômeno isolado. Ou seja: não se trata de um veto à lógica da democracia representativa, mas sim de um espelho bastante fiel do que ocorre em tantos outros segmentos da sociedade. Nos últimos dias, dois filmes me ajudaram muito a entender o tamanho desse abismo. O primeiro deles é a curta série sobre Isabel Allende na Amazon Prime. Denominada Isabel, o primeiro episódio conta a história dessa brilhante escritora em meio ao golpe militar ocorrido no Chile no começo dos anos 70. E como uma revista de mensagens feministas, da qual ela era colunista, foi massacrada pela ascensão de conservadores ao poder. Insisto em algo aqui que sempre repetirei: não vejo qualquer problema em uma pessoa ser conservadora, a questão central está em impor agendas de maneira absoluta e preconceituosa a partir dessa respeitável característica. Se a posição ativa de uma mulher me incomoda, eu não posso defender que ela seja banida da realidade. A agenda conservadora, em parte, tem esse problema: por ter reinado sozinha por décadas, ela não consegue ser democrática, julgando-se drasticamente absolutista.
O segundo filme retrata a história de Antonia Brico – Antonia: uma sinfonia. Aqui o machismo absoluto e deprimente está associado ao sonho de uma mulher reger uma orquestra, algo imaginado como impossível no começo do século passado. A narrativa é romantizada demais, mas é necessário enfatizar que a lista de grandes maestros divulgada no começo do atual século mostra que a situação nos desafia até hoje, e os argumentos e percepções da época sobre o assunto incomodam demais. Assistir a um filme sobre período tão próximo com a cabeça do presente é algo que incomoda qualquer ser humano que não seja machista ao extremo e defenda, assustadoramente, o que se vê no filme.
Mas a pergunta que fica aqui é: existem pessoas que vivem no século XXI com a cabeça no começo do XX? Não só existem como abundam. E elas perderam a vergonha de falar, de dizer, de sentir e se expor. Tivemos um deputado estadual, recentemente, que posou para foto ao lado do marido de Maria da Penha (foto acima), que empresta nome à lei de combate à violência contra a mulher, dizendo que a versão da história do facínora é interessante. Percebeu? As pessoas perderam a vergonha. Deixaram de lado o respeito e parecem se divertir com isso.
Dia desses, entrei de câmera fechada e microfone desligado numa reunião de conselho de uma organização da qual faço parte. O discurso, proferido e defendido por homens, brancos e velhos como eu, partia da ideia de que a defesa da diversidade feminina era desagregadora e dizimadora da realidade atual. Fiquei ouvindo tudo aquilo com uma preguiça imensa e pensei: realmente, se tivéssemos diversidade nesse ambiente, talvez a gente perdesse essa unidade masculina que desavergonhadamente passou a ter coragem de repetir absurdos sob o símbolo da liberdade de expressão. O homem que imagina que uma mulher não atingiu seu sucesso porque lhe faltou competência precisa se repensar urgentemente e ter a mínima capacidade de perceber que seu caminho, por mais difícil que tenha sido, foi infinitamente mais fácil a partir da “sorte” que ele teve de não ter nascido mulher. Duvida? Discorda? Estude um pouco o que a variável gênero é capaz de fazer em nossa sociedade quando o assunto é político, social e econômico e terás a exata dimensão do que estamos a defender aqui. A diversidade urge.
Humberto Dantas é doutor em ciência política pela USP e pós-doutor em administração pública pela FGV-SP. Coordenador dos programas de educação do Centro de Liderança Pública – CLP.
Importante discurso e encorajador ,…