Virtù convidou o economista Affonso Celso Pastore para explicar os desafios que o Brasil vai enfrentar nesse admirável mundo novo de juros negativos e inflação baixa.
Vivemos num mundo novo que produziu uma situação econômica inusitada: o início de uma era de inflação baixa e taxas de juro negativa. Há um intenso debate na esfera política, no mundo acadêmico e entre os economistas sobre as implicações desse fenômeno na vida das pessoas. Juros negativos desestimulam a poupança e inflacionam o preço dos ativos, como ações e imóveis. Os números nos Estados Unidos mostram que o endividamento dos americanos já atingiu os volumes estratosféricos que lembram o cenário da “exuberância irracional” que desencadeou a crise financeira de 2008. A maior parcela da dívida privada é composta do pagamento das prestações de imóveis que já atingiu 9,4 trilhões de dólares, ultrapassando o pico da dívida imobiliária de 2008.
Além do aumento do endividamento das pessoas e o abrupto aumento do valor dos ativos, há também a questão do baixo índice de crescimento econômico. No caso do Brasil, os próximos governos serão obrigados a promover políticas públicas que estimulem o aumento de produtividade, da competitividade e do investimento em capital humano e capital físico para que a economia volte a crescer e a gerar emprego.
Convidamos o economista Affonso Celso Pastore para explicar os desafios que o Brasil vai enfrentar nesse admirável mundo novo de juros negativos e inflação baixa.
A contínua queda da taxa de juros
Em torno de 1990, as taxas de juros dos títulos públicos de 10 anos em países de risco soberano nulo – Alemanha, Inglaterra, Japão e Estados Unidos – se situavam entre 8% e 12% ao ano, de desde então caíram continuamente. Hoje em dia estes mesmos títulos pagam taxas negativas na Alemanha e no Japão, em torno de 1% na Inglaterra, e nos EUA as taxas ameaçam romper a taxa de 2% ao ano, como mostra o gráfico abaixo.
Para evitar que na crise de 2008/2009 fosse repetido o erro da Grande Depressão (1929), todos os bancos centrais dos países maduros colocaram suas taxas básicas de juros no “limite zero”, e era esperado que com a recuperação dessas economias as taxas retornassem aos níveis tidos como “normais”. Todas essas economias já se recuperaram e, no entanto, as taxas de juros continuaram caindo.
A transição demográfica é a principal causa da queda das taxas de juros
Em torno de 2015, o ex-secretário adjunto do governo Clinton – Larry Summers – começou a falar em um fenômeno ao qual simultaneamente assistimos a taxas baixas de juros ao lado de um crescimento econômico muito fraco. Em economia, o que vale não é o diagnóstico de um economista reputado, e sim o embasamento empírico de sua previsão. no caso de Larry Summers existiam as duas coisas.
Havia em desenvolvimento no mundo um fenômeno – a transição demográfica -, no qual se eleva sensivelmente a idade de sobrevivência dos indivíduos, forçando os jovens que estão em idade ativa a poupar mais para sobreviverem na velhice. Com isso, as poupanças cresceram e, em última instância, a taxa real de juros de equilíbrio é nada mais, nada menos, do que aquela que equilibra poupanças e investimentos.
Hoje em dia dispomos de inúmeras evidências empíricas de que embora a transição demográfica não seja a única causa da queda das taxas de juros, ela é seguramente a mais importante. Foi um fenômeno que ocorreu antes no Japão, cuja taxa dos títulos de 10 anos caiu bem antes do que no restante dos países maduros, e tornou-se importante na Europa antes dos EUA. Transição demográfica não é um fenômeno cíclico, e sim estrutural. Por isso não se espera que a clara tendência de queda das taxas de juros ao redor do mundo seja algo temporário.
Razões da queda das taxas de juros no Brasil
Em um mundo no qual os mercados financeiros são extremamente integrados, o que se passa em um conjunto de países gera impulsos na mesma direção nos demais. Esta é uma das razões – mas certamente não a única -, pela qual as taxas reais de juros no Brasil tenham uma clara tendência de queda. Olhando um período bem mais curto, de 2014 em diante, vê-se claramente que as taxas de juros das NTN-B – um título público completamente coberto do risco de inflação –, caíram de um patamar flutuando entre 6% e 8% ao ano, para níveis que se situam em torno de 3,5% ao ano (as NTN-B com vencimento em 2030) ou abaixo disto, nos títulos mais curtos.
Embora a transição demográfica também esteja ocorrendo no Brasil – afinal, esta é a razão principal para que estejamos realizando uma reforma da previdência -, as causas dessa queda são mais amplas.
Desde a adesão brasileira ao regime de metas de inflação vem ocorrendo um aprimoramento da gestão macroeconômica, o que reduz riscos contribuindo para a queda da taxa de juros. Mais importante do que isso, contudo, é que a consolidação fiscal que está se iniciando com a reforma da previdência deve levar o governo de uma situação de poupanças negativas (os déficits primários) para uma situação de superávits. A reforma da previdência gera um aumento da poupança – desta vez do governo -, mas seus efeitos são os mesmos, isto é, a redução da taxa real neutra de juros.
Consequências de um extenso período de taxas de juros baixas
Esta análise nos leva a antever um extenso período de taxas reais de juros baixas, no Brasil e no mundo, o que tem consequências. Uma primeira é o seu reflexo nos preços dos demais ativos financeiros.
Recentemente assistimos a um ciclo de elevação dos preços das ações nos EUA e no Brasil. Não é algo que se deva estranhar, considerando que os mercados financeiros estão integrados. O que se estranha é como crescem os preços das ações no Brasil quando a economia está deprimida ou estagnada, se não gostarem do primeiro termo.
Em uma economia estagnada, as expectativas são de lucros baixos e, como nos ensinam os manuais mais elementares de economia, o preço de uma ação nada mais é do que o valor presente dos lucros esperados, usando como taxa de desconto a taxa de juros dos títulos públicos sem riscos. É óbvio que mesmo que as expectativas de lucros mantenham-se baixas, os preços das ações podem (e devem) se elevar diante de uma queda sensível da taxa de desconto. Se não fosse por isso, somado ao “contágio positivo” vindo dos EUA devido à integração dos mercados financeiros, seria impossível explicar o comportamento dos preços das ações no Brasil.
Uma segunda consequência de nossa convivência com taxas de juros baixas é colocar uma pá de cal em cima de explicações simplistas sobre o nosso atraso no crescimento econômico.
Confesso minha irritação com a conversa dos “economistas de uma ideia só”, para os quais o atraso brasileiro se deve apenas a uma política monetária conduzida de forma a “satisfazer os rentistas”. Temos que combater as taxas de juros altas, porque elas inibem os investimentos, mas é preciso descer às suas causas, que não se resumem a uma “conspiração” do Banco Central em favor dos rentistas. Uma das causas de seu comportamento está em uma política fiscal extremamente expansionista, que tudo indica está sendo revertida. A outra consequência deste “novo normal”, com taxas de juros baixas, é que toda a energia que era canalizada para denunciar os males da suposta “conspiração em favor dos rentistas”, poderá ser canalizada para a busca de políticas econômicas que aumentem a produtividade do trabalho, através de estímulos ao aumento dos investimentos em capital fixo e em capital humano, e que produzam reformas que elevem a produtividade total dos fatores. Este é o caminho que devemos procurar, e o ciclo que agora se inicia, de um longo período de juros reais baixos, nos ajuda a percorrê-lo em benefício do País.