Apesar do aumento da produção de gás nos últimos anos, 38% desse volume é perdido ou devolvido aos poços.
Cerca de 80 anos após o início da produção brasileira de gás natural, o capitalismo parece estar chegando ao setor. Esta é a aposta do ministro Paulo Guedes, que promete um “choque de energia barata” nos próximos dois anos com a abertura do Novo Mercado de Gás. Guedes projeta uma queda de até 50% no preço do gás ao longo dos próximos 2 anos.
O plano, anunciado ainda na campanha eleitoral de Bolsonaro, é ambicioso e está em vigor. Seu objetivo é aproveitar, através da concorrência e participação privada, o considerável aumento da oferta de gás prevista para os próximos anos. O Ministério de Minas e Energia calcula que a produção de gás aumentará cerca de 85% nos próximos 10 anos.
A produção de gás no Brasil
Já se podem sentir os primeiros efeitos dessa arrancada na produção. Em 2019, a média de produção diária foi de 112,91 milhões de metros cúbicos de gás, um aumento de 17% na comparação com os 96,24 milhões produzidos em 2015. É um ótimo sinal. Mas foi também um forte lembrete de que a produção é apenas o primeiro passo de uma longa cadeia de eventos que termina na casa ou na empresa do consumidor.
“Essa promessa do governo, de que o gás vai cair até 50%, não faz o menor sentido. O preço pode até cair, mas só se a gente fizer o dever de casa direitinho e deve demorar pelo menos uns 4 anos. A gente precisa levar o gás para o mercado consumidor e, para isso, é preciso infraestrutura, o que a gente não tem. ” Adriano Pires | Fundador do Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE)
Apesar do aumento da produção, até agora 2019 houve diminuição na quantidade de gás entregue aos consumidores. O aparente paradoxo se deve à fraca demanda combinada a uma infraestrutura de distribuição e transporte ainda enferrujada. Os produtores viram-se na contingência de reinjetar (33%) boa parte do gás retirado dos campos. Representando menor volume, 5%, queimas e perdas de gás também cresceram, contribuindo para sabotar o aumento de produção.
O governo pretende mudar esse cenário com uma dose de capitalismo, trazendo concorrência e incentivos a investimentos privados no setor. Alcançar o “choque de energia barata” pretendido por Guedes só será possível com mudanças profundas na composição do mercado. Para chegar lá, será preciso quebrar o histórico monopólio da Petrobras.
O Novo Mercado de Gás, ofertando o combustível com preços 50% menores é fator essencial na estimativa de aumentar a produção industrial em 10,5% no curtíssimo prazo. Os impactos duradouros na estrutura produtiva do País no controle da inflação são óbvios. Ainda assim, Guedes e sua equipe estão prevendo sérias resistências à frente, dada a tradição brasileira de deixar passar oportunidades.
Fim do monopólio da Petrobras
O Novo Mercado de Gás é baseado em quatro pilares. O primeiro e mais importante deles é o aumento de concorrência através da quebra do monopólio da Petrobras no setor. Ou, como seria mais preciso, a quebra dos diversos monopólios existentes.
Em documento divulgado no início do ano, antes das primeiras etapas do plano, o Ministério da Economia ilustrou a desesperadora ausência de competição privada pelo gás brasileiro.
Na etapa inicial do processo produtivo, a Petrobras é dominante. Cerca de 77% da produção estava nas mãos da estatal no início do ano, assim como quase 100% do suprimento. Na etapa seguinte, a Petrobras opera com exclusividade as rotas de escoamento. Depois de escoado, o gás pode ser processado (99% da capacidade de processamento era da Petrobras) ou regaseificado (100% dos terminais em operação no início do ano eram da Petrobras).
A penúltima etapa de produção é o transporte – até o início do ano, quase 100% do carregamento era controlado pela Petrobras. Por fim, a distribuição está nas mãos de companhias distribuidoras locais, geralmente ligadas aos governos estaduais. Das 27 distribuidoras nacional, 20 tinham participação da Petrobras. Até mesmo após a produção, na fase da demanda, a Petrobras é dominante: 45% das usinas termelétricas consumidoras de gás natural estão sob controle da estatal.
Esta situação já começou a mudar. O primeiro passo se deu em acordo da Petrobras com o CADE, no qual a petrolífera se comprometia a se desfazer de ativos visando maior concorrência no setor.
Desde o início, já houve avanços significativos no projeto. A TAG, maior transportadora do país, foi vendida por R$ 33,5 bilhões para a Engie, uma multinacional franco-belga. Pelo acordo com o CADE, a Petrobras precisa sair completamente das fases de distribuição e transporte do gás natural até 2021.
Como lidar com os governadores?
O Novo Mercado de Gás é encabeçado pelo governo federal. Desde a concepção, não há dúvidas sobre o status de Paulo Guedes como padrinho político da proposta. O projeto, porém, tem um grande desafio: a distribuição do gás é monopolizada pelos governos estaduais, que também regulam boa parte do mercado. Sem eles, o Novo Mercado de Gás não sai.
Na visão do governo, não é preciso mudar as leis em Brasília, alterando competências federativas. A estratégia adotada é incentivar que cada estado aprove espontaneamente uma nova legislação para o setor de gás. Com o aumento da disponibilidade de gás, acredita-se que os próprios governadores terão interesse em aderir ao Novo Mercado. Ativos ligados ao setor tendem a ganhar valor para eventuais privatizações futuras.
O mais importante, porém, é o papel estadual na regulação do sistema de dutos. Mesmo que a concorrência venha e a oferta cresça, o aumento da infraestrutura de gasodutos é crucial para que a demanda corresponda às expectativas.
Provavelmente se trata do ponto mais duvidoso do plano. Sem segurança jurídica, os investimentos não virão e o plano de Guedes pode ir pro saco. Para evitar fracassos na área, o governo estreia o Novo Mercado de Gás já com a nova regulação aprovada no Rio de Janeiro e Espírito Santo, fundamental para levar o gás natural do pré-sal a outros estados.
Nos próximos meses, o plano de recuperação fiscal dos estados (o Plano Mansueto), a nova proposta de pacto federativo e outras discussões nacionais devem incluir estímulos para que os estados reformem a regulação interna da distribuição de gás natural.
Consumidores livres
Uma das grandes mudanças no Novo Mercado de Gás será o instituto dos consumidores livres, que podem trocar de fornecedor de gás natural como e quando quiser. Nesse caso, os efeitos da concorrência podem ser ainda maiores.
Caso o preço ou qualidade do serviço esteja pior que o esperado, bastaria trocar a operadora, sem deixar de usar os gasodutos que abastecem a empresa. Há semelhanças diretas com a portabilidade numérica dos celulares, que também acirrou a competição nas telecomunicações.
Como o governo pretende utilizar o Novo Mercado para reviver a indústria brasileira, o instituto dos consumidores livres é extremamente importante. Falta, dentre outras coisas, uma infraestrutura de gasodutos compatível com o aumento pretendido para a demanda.
Geração de energia elétrica por via térmica
Outra prioridade do governo é incentivar a geração de energia elétrica por via térmica. Para isso, também seria necessário um sistema de gasodutos ligando os novos campos de exploração a usinas termelétricas. Principalmente porque o governo pretende incentivar a difusão de tais usinas.
Sem investimentos em novos gasodutos voltados para termelétricas e grandes indústrias, não haverá Novo Mercado de Gás. E, sem segurança jurídica, seguiremos longe desses investimentos.
Paulo Guedes tem sido criticado pela promessa de redução expressiva no preço do gás antes de resolver as questões estaduais e jurídicas que complicam a vida dos investidores. O ministro, porém, vendeu o projeto e entregou os primeiros resultados mensuráveis. O mapa do caminho está desenhado e faz todo o sentido. As forças do progresso precisam ajudar o ministro a vencer as resistências genuínas e aquelas que fazem parte da matriz de nosso atraso — as dificuldades artificiais criadas com o objetivo de se vender facilidades.