O Brasil está perdendo seu lastro com a democracia porque fez pouco para manter esse norte aceso e vivo como valor perene. A realização de eleições periódicas num oceano de desgastes políticos e ausência de sentimentos de justiça é algo que para muitos torna a democracia descartável
Artigo de Humberto Dantas
Em 1988 promulgamos o mais importante documento da história do Brasil se os temas centrais da conversa forem a Democracia e a Cidadania. Estou falando da Constituição Federal. No ano seguinte, depois de duas décadas de ditadura e cinco anos de redemocratização praticamos o que nos levara às ruas entre 1983 e 1984, elegendo um presidente de forma direta. A todo esse período se dá, irresponsavelmente, sem qualquer aposto verificador associado à realidade econômica, o nome de “década perdida”.
Os anos 80 do século passado são, em termos históricos, a mais emblemática década da trajetória do Brasil se o assunto for Democracia. Nunca tivemos período semelhante a esse, e se desejamos manter o que ele significou, esperemos nunca ter nada igual.
Pois bem. Existe democracia no Brasil? Explico o motivo de minha pergunta: o que fizemos nos anos 80 significou a criação de um conjunto artificial de valores pintados sobre uma tela manchada de sangue e pouco afeita a valores democráticos fundamentais; ou representou um norte a ser valorizado e construído como compromisso diário e associado ao que desejávamos para o nosso futuro? Vou tentar dar um exemplo concreto com base em outra realidade.
Uma amiga alemã me disse certa vez que é dolorido para a sua geração ter tantos conteúdos históricos, filosóficos e políticos sobre um nazismo que eles, jovens, não viveram e, muito menos, ajudaram a construir e sustentar. Mas ela afirmou que entendia toda aquela insistência, pois reconhecia que algo daquele tipo só terá potencial para nunca ser repetido se os estudantes forem educados em torno de valores que os levem para longe de qualquer ideia semelhante ou capaz de fomentar similaridades. Minha pergunta: depois de duas décadas de ditadura, e de tantos outros instantes autoritários que vivemos em nossa história anterior a 1964 no Brasil, e tendo em vista uma década dourada de lutas que começam com o Movimento Diretas Já em 1983 e termina com as eleições de 1989, o que fizemos de tão especial, universal, e edificante para termos a mais absoluta certeza de que a Democracia é um valor inquestionável no Brasil?
Quem responder NADA estará equivocado. Mas quem disser que falta – e faltou – muito, e que iniciativas de impacto universal não existiram, estará mais perto da realidade. Infelizmente, o Brasil está perdendo seu lastro com a democracia porque simplesmente fez pouco para manter esse norte aceso e vivo como valor perene. A realização de eleições periódicas num oceano de desgastes políticos e ausência de sentimentos de justiça e perspectiva de futuro é algo que, para muitos, corre o risco de tornar a democracia descartável. É grave essa constatação quando essa sociedade elege, mesmo sem perceber, um presidente que dá evidências ao longo de toda a sua trajetória política de que bastará uma faísca no universo do autoritarismo para assistirmos a um verdadeiro incêndio a nos carcomer conquistas essenciais. A lição está posta: a eleição de 2022 não será apenas um instante onde vamos confrontar ideias. Será um momento em que confrontaremos valores, e testaremos se efetivamente temos algum apego democrático.
A possível derrota de Bolsonaro nas urnas, no entanto, não significará qualquer avanço inquestionável em torno desses valores que desejamos. Não porque ele não seja a antítese do que não queremos por perto, mas sobretudo porque é essencial que em caso de derrota, avaliemos o que terá levado o brasileiro a tal escolha. O voto contra o atual presidente será uma escolha associada a uma realidade econômica e social sofrida? Se SIM, nada o impede de voltar com força se tudo piorar. E isso não é impossível de ocorrer. A razão essencial para sua derrota, em associação direta com o que está posto nesse texto, teria que estar associada a valores políticos. Mas alguém vota na democracia como valor vivido, conquistado e almejado? Difícil.
Assim, termino este texto observando que apenas 40% do eleitorado atual tinha algo entre 12 e 14 anos de idade, ou mais, entre a promulgação da Constituição Federal de 1988 e a eleição presidencial de 1989. Isso significa que mais de 60% dos eleitores brasileiros não viveu de forma presente, e minimamente consciente, o processo mais marcante da história da democracia brasileira. Longe de mim dizer que livros, escolas, professores e valores não possam disseminar o que foi aquilo. Longe. Mas fazemos isso? Fizemos isso? Onde está esse conteúdo e esses exercícios fundamentais? Longe de mim também dizer que todos os brasileiros que viveram os anos 80 entenderam o que eles significaram para a consolidação de um valor que se pretendia universal. Fosse desse modo e nunca nos referiríamos àquele período como a década perdida. E isso pode nos levar a dizer, em poucos anos, que em algum lugar deixamos de nos encontrar com a democracia, ou nos tornamos “uma sociedade perdida”.
Se nada disso fizer sentido para você, sinto dizer: preocupemo-nos.
Humberto Dantas é doutor em ciência política pela USP e pós-doutor em administração pública pela FGV-SP. Coordenador dos programas de educação do Centro de Liderança Pública – CLP.
No caso, nossos problemas políticos atuais estão conectados a uma indisposição para refletirmos sobre o que foi a ditadura nas gerações posteriores? Parece-me simplista, mas não incorreto.
Em 2018, a opção era entre um tosco e ignorante que prometia erradicar o desastre da criminosa era petista.
Nada a ver com descrença na democracia. A corrupção generalizada e impune é uma ameaça muito maior à democracia que os arroubos estéreis de um idiota.