Artigo de Euripedes Alcantara | Jornalista. CEO na Inner Voice Comunicação. Foi diretor da revista Veja por 12 anos e correspondente em Nova York.
Calejado e (quase) sempre do lado do bom senso, Martin Wolf, colunista do jornal inglês Financial Times, chegou à seguinte e grave conclusão ao comentar o artigo de outubro passado em que os economistas de Harvard David Cutler e Larry Summers calculam em 16 trilhões de dólares o custo da epidemia de Covid-19 só nos Estados Unidos:
“A Covid-19 foi um choque econômico mais devastador do que os economistas esperavam. Esta é uma grande lição. Uma próxima doença ainda mais virulenta é perfeitamente concebível. Na próxima vez, devemos suprimir a doença muito mais rapidamente. Muitos tagarelam a respeito da liberdade. Mas a segurança das pessoas deve permanecer a lei suprema da política agora e para sempre.”
Esperamos que tenha sido apenas um momento de invigilância retórica, mas Wolf colocou um preço na liberdade: 16 trilhões de dólares, ou, para os Estados Unidos, o equivalente a um terço do PIB. Extrapolando para o mundo, aceitando-se que, proporcionamente, todos os países viram escoar dois terços do PIB sob o ataque da Covid-19, então ficamos combinados que, para evitar perder 65 trilhões de dólares, aceitamos parar de “tagarelar” sobre a liberdade já que, segundo Wolf, “a segurança das pessoas é a nova lei suprema da política.”
Em bom inglês, we beg to differ, pois a humanidade já enfrentou desafios bem piores do que o novo coronavírus sem se arruinar economicamente e sem colocar a liberdade sobre o pano verde – aliás, o que abriu a porta para o atual ciclo de progresso material do mundo foi a vitória do Ocidente na luta pela liberdade contra os coletivismos incontrastáveis propostos pelo nazismo, o fascismo e o comunismo.
A narrativa do sacrifício da liberdade agora, em benefício de algum inefável bem coletivo futuro, está se tornando perigosamente difundida. Se notarmos bem, diminuir a liberdade faz parte da maioria das soluções apontadas para qualquer dos grandes desequilíbrios globais que nos assolam nesse primeiro quarto do século XXI – da pandemia de Covid-19 à desigualdade socioeconômica; do aquecimento global à extinção das espécies; das imigrações à insegurança alimentar. Em todas essas questões sempre aparecem, com ênfases variadas, a ideia de que alguém precisa aceitar sem “tagarelar” a autoridade de alguma entidade iluminada superior que vai apontar o caminho glorioso a ser seguido por todos.
Interessante notar que Cutler e Larry Summers não compram a narrativa da diminuição das liberdades, nem quando substituem o custo monetário trazido pela pandemia de Covid-19 pelo número de mortes que ela provocou. Eles enfatizam a necessidade de se manter alta e permanente a vigilância mesmo depois de vencida essa guerra global contra a Covid-19. Sugerem que continuem os “investimentos feitos em testes, o rastreamento de contato e isolamento dos contaminados”.
Obviamente, não defendemos o laissez-faire ou a anarquia quando apontamos com preocupação a leveza de alma com que se apresenta o sacrifício da liberdade como parte da solução dos problemas globais. O princípio consagrado de que a liberdade de cada um termina quando começa a do outro é o que nos trouxe até aqui na caminhada evolutiva da humanidade. É o princípio que nos levará adiante.
Quando alguém é paciente e ao mesmo tempo vetor de uma doença contagiosa grave, sua liberdade individual de contaminar o próximo precisa ser alvo de vigilância e controle. Há mais de um século, em 1905, a Suprema Corte americana em Jacobson v. Massachusetts, decidiu sobre a obrigatoriedade das vacinas sob o argumento de que “a compulsão de introduzir doenças em um sistema saudável é uma violação da liberdade”.
A convivência livre em uma sociedade aberta pressupõe regras. Viver a liberdade possível entre as muralhas da sociedade é uma opção que precisa ser livre e individual — a única outra, como disse Hobbes, é uma vida “solitária, pobre, degradante, brutal e curta.” Ou seja, só existe liberdade com obediência a regras. Isso é totalmente diferente da submissão cega à “tirania da maioria”, que exasperava John Stuart Mill, hoje transmutada em “tirania do consenso”.
O ideal seria também que tagarelar sobre liberdade não seja confundido com a irracionalidade ruídosa de trumpistas e bolsonaristas quando contrariados em seus delírios. Até porque a lei suprema da política precisa continuar sendo a liberdade.