Em discurso que lembrou um pout-pourri de suas lives, Bolsonaro consolida isolamento internacional e faz o contrário daquilo que deve ser uma boa diplomacia: reduz as possibilidades externas do País e oferece aos brasileiros uma realidade interna ainda mais tacanha
O Brasil tem pagado um preço elevado pelo isolacionismo de Jair Bolsonaro, um presidente motivado apenas a governar para a sua base mais fiel. O País perde espaço nas arenas de decisão das políticas internacionais e vê diminuir a influência de seu soft power, construído ao longo de décadas pelo trabalho de várias gerações de diplomatas. O País perde credibilidade na comunidade mundial de negócios e vê diminuir a afluência de investimentos, urgentes para o desenvolvimento econômico e social.
Esperava-se, por tudo isso, que o pronunciamento de Bolsonaro na abertura da 76ª Assembleia Geral da ONU seria a oportunidade para apresentar ao mundo uma
virada, ainda que tímida, em direção à sensatez. Em vão. Bolsonaro foi 100% Bolsonaro. O seu discurso, de pouco mais de 12 minutos, assemelhou-se a um pot-pourri dos tuítes, mensagens de Whatsapp e fake news que o presidente e seus seguidores disseminam cotidianamente. A fala foi repleta de imprecisões, mentiras e agressões pueris. Um breve trecho exemplifica o grau de desfaçatez alcançado na tribuna da ONU: “Estamos há 2 anos e 8 meses sem qualquer caso concreto de corrupção”, afirmou o presidente, cuja família é pródiga em rachadinhas e negociatas suspeitas.
Logo de saída, Bolsonaro afirmou que estaria ali “para mostrar o Brasil diferente daquilo publicado em jornais ou visto em televisões”. O País, afirmou, “tem um presidente que acredita em Deus, respeita a Constituição e seus militares, valoriza a família e deve lealdade a seu povo” e “isso é muito, é uma sólida base, se levarmos em conta que estávamos à beira do socialismo”. Em poucas linhas, desacreditou a imprensa e as opiniões contraditórias, ao mesmo tempo em que afaga o seu núcleo de apoio. Lembrou o seu primeiro discurso na ONU, há dois anos, quando em sintonia com o então presidente americano Donald Trump, fez menções às ameaças do globalismo e do socialismo.
Ao falar da economia, Bolsonaro disse que seu governo recuperou a credibilidade do País e vem atraindo investimentos. Palavras que não combinam com as estatísticas. Se é verdade que houve a aprovação de algumas leis favoráveis aos investimentos em alguns setores (como foi no caso do saneamento) e há também casos de progresso nas concessões na infraestrutura (como já vinha ocorrendo antes de seu governo), os ganhos são modestos diante das possibilidades que poderiam se abrir aos empreendedores caso o governo, de fato, esforça-se para conquistar credibilidade e aprovar reformas estruturantes.
No mundo real, a turbulência institucional causada por e o risco fiscal de seu populismo afugentam os investidores, que aguardam um horizonte menos turvo para realizar empreendimentos de longo prazo. Os números falam por si: inflação a 10%, desemprego acima de 14%, frustração da retomada econômica. É provável que o País fique nos próximos meses preso ao atoleiro da “estagflação”, o terrível ambiente de estagnação no crescimento e inflação nas alturas.
Ao tratar da Amazônia, o tema relativo ao Brasil de maior interesse e preocupação na comunidade internacional, Bolsonaro falou como se tudo estivesse perfeitamente bem. Mesclou platitudes, imprecisões e inverdades. Lembrou que reduziu de 2060 para 2050 o prazo tido como meta para o Brasil ser uma economia carbono neutra, mas sem oferecer indícios de como isso será feito. O pior foi ter dito, não se sabe com base em qual fonte, que houve uma redução de 32% nos desmatamentos em agosto em relação a agosto do ano passado. Levantamentos independentes mostram um cenário completamente diverso: o País poderá fechar o ano com a maior destruição de florestas da última década.
No que se refere à pandemia do coronavírus, o presidente criticou os lockdowns e disse que eles foram responsáveis pela inflação. Defendeu o direito à vacinação, deixando de lado, claro, o seu atraso em adquirir as vacinas. Como se estivesse em uma de suas lives, elogiou as virtudes do “tratamento precoce”, mas pelo menos sem fazer a apologia da cloroquina e da ivermectina. “Não entendemos porque muitos países, juntamente com grande parte da mídia, se colocaram contra o tratamento inicial”, disse o presidente. “A história e a ciência saberão responsabilizar a todos.”
No desfecho de sua fala, quase toda ela destinada ao público interno, Bolsonaro citou os atos do 7 de Setembro, que, segundo ele, “foram a maior manifestação de nossa história” e em apoio à “democracia” e “ao nosso governo”. Só se for na definição “bolsominiana” de democracia. Estão vivos ainda, na memória de todos, os ataques feitos pelo presidente ao processo eleitoral e ao Supremo Tribunal Federal.
Na clássica definição do ex-chanceler Celso Lafer, “política externa como o permanente esforço de um país de compatibilizar suas necessidades internas com suas possibilidades externas”. Ainda segundo Lafer, um dos mais influentes diplomatas da história recente do País, a necessidade interna deve ser vista como “o empenho na ampliação da capacidade de uma sociedade nacional de conformar o seu próprio destino”.
Bolsonaro, preso ao seu universo particular — seja por ignorância, cinismo ou cálculo político rasteiro –, reduz as possibilidades externas do País e oferece aos brasileiros uma realidade interna ainda mais tacanha. O Brasil tem no comando um pária orgulhoso de ser pária.