Artigo de Felipe Salto e Daniel Couri. Diretor-Executivo e Diretor da IFI, respectivamente.
O processo orçamentário deveria ser o ápice do jogo democrático. Afinal, todas as políticas públicas relevantes passam por esta lei. É ali que se discute a partilha dos tributos e de outras receitas para guarnecer a previdência, os gastos sociais, a saúde e a educação, entre outras áreas. Em 2020, chega-se ao fim do ano sem saber quais serão as prioridades para 2021 e com as regras fiscais em xeque.
Há três instrumentos fundamentais nesta matéria: a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), a Lei Orçamentária Anual (LOA) e o Plano Plurianual (PPA). Em todos os casos, a iniciativa é do Poder Executivo, que envia os respectivos projetos de lei ao Congresso para apreciação.
O PPA é um instrumento de planejamento de médio prazo, aprovado no primeiro ano do mandato presidencial, valendo para os quatro anos subsequentes. Hoje, pouco funciona. A LDO indica parâmetros e regras para a elaboração da LOA, que é o orçamento propriamente dito, onde se estimam os recursos arrecadados junto à sociedade e se define como eles retornarão na forma de bens e serviços públicos.
O processo legislativo orçamentário não é qualquer processo: diferente de outras matérias, dispõe de rito próprio na Constituição. Lá está dito, por exemplo, que os três instrumentos (PPA, LDO e LOA) devem ser examinados por uma comissão permanente do Congresso. A comissão, que deveria ser instalada no fim de março de cada ano, provavelmente não se reunirá em 2020.
A tramitação das leis orçamentárias envolve a realização de audiências públicas, a apresentação de emendas pelos parlamentares, a elaboração de relatórios preliminares e votações na comissão permanente e no plenário do Congresso. Para garantir, em curto espaço de tempo, a participação social e a representatividade dos diversos interesses envolvidos nas decisões alocativas, há uma liturgia a ser seguida.
Esse processo não foi feito para caber no último mês do ano. Ao que parece, contudo, em 2020 votaremos apenas a LDO e a execução do orçamento no início de 2021 se valerá de uma controversa regra que permite a realização de parcela dos gastos previstos no PLOA.
Em 2020, o projeto da LDO chegou ao Congresso, em abril, já com uma inovação: a meta “flutuante” de déficit primário. Dada a incerteza trazida pela crise da covid-19, optou-se por uma projeção e não por uma meta. O teto de gastos estaria garantido, mas o resultado não: dependeria da arrecadação efetivamente observada em 2021. Por contrariar o espírito da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), a proposta foi questionada pelo TCU e não deve prosperar. Mas não deixa de ser mais uma pendência a ser resolvida no pouco tempo que resta.
É verdade que a crise sanitária impôs dificuldades adicionais a esse processo. Para o ano que vem, segundo projeções da Instituição Fiscal Independente (IFI), o risco de rompimento do teto é alto, a dívida crescerá e o PIB terá recuperação lenta. Tempera esse caldo amargo o risco de uma segunda onda da covid-19, com todos os seus desdobramentos.
Nesse contexto, contabilizadas eventuais (e prováveis) despesas novas, a exemplo do auxílio emergencial ou Renda Cidadã e de gastos para compra de vacinas, o espaço orçamentário seria quase nulo. Para ter claro, as despesas discricionárias do Executivo sujeitas ao teto de gastos estão previstas em R$ 108,4 bilhões, no PLOA, dos quais R$ 16,3 bilhões correspondem a emendas parlamentares impositivas. Isto é, sem mexer nas emendas, restaria um espaço fiscal de R$ 92,1 bilhões. Em termos absolutos, é muito dinheiro, mas não em comparação a um orçamento primário total que ultrapassa R$ 1,6 trilhão. Historicamente, os R$ 92,1 bilhões já representariam nível muito baixo. Se precisar ser reduzido, aumentaria o risco de paralisação da máquina pública.
Esse alerta vem sendo feito há um bom tempo pela IFI, mesmo levando-se em conta as alterações de cenários ao longo do tempo. Desde 2018, apontava-se o risco de o teto ser rompido diante da estratégia de ajuste via discricionárias.
Em resumo, às vésperas do Natal, não há meta de déficit primário, o teto pode ser burlado e avolumam-se as pressões (legítimas, não custa dizer) por gastos sociais em meio a uma crise sem precedentes. Vale dizer, a queda prevista para a ocupação, neste ano, é de 8,8%, e a recuperação, no ano que vem, de apenas 1,8%. Isto é, o contingente de pessoas à margem do mercado de trabalho vai aumentar. Algum atendimento do Estado será necessário.
Como comportar essas questões – reforçadas por recomendações recentes do FMI e do Banco Mundial sobre a importância de uma retirada gradativa dos estímulos – ao objetivo de reequilibrar as contas públicas?
Podemos dividir o problema em duas dimensões: equacionar as contas de 2021, a primeira, e dissipar as nuvens que turvam as expectativas de médio prazo sobre a dinâmica da dívida, a segunda.
A dívida pública bruta deve encerrar 2020 em 93,1% do PIB, mais de 17 pontos do PIB superior ao nível de dezembro de 2019. O Brasil é o país emergente com dívida mais alta, problema que antecede a crise do coronavírus. A reforma da previdência aprovada em 2019 ajudará a manter essa fatia do gasto equilibrada em relação ao PIB, mas outros gastos obrigatórios seguirão sujeitos a regras de indexação e irredutibilidade. A natureza obrigatória de uma despesa não é o problema, em si, mas é inegável que isso impõe uma rigidez maior ao orçamento no curto e médio prazo.
O caminho mais próspero parece ser o de retomar o planejamento orçamentário e a importância desse processo para a democracia e o desenvolvimento econômico e social. Isso no sentido de que melhores políticas públicas podem ocupar o espaço de políticas que já se mostraram ineficientes. Para tanto, caberia avançar na agenda da avaliação dos programas orçamentários e balizar futuros cortes de gastos nesses critérios.
O teto de gastos é uma inovação importante, mas está batendo pino, como se diz. Sozinho, não resolverá o problema fiscal e econômico do país. Medidas pelo lado da receita poderiam ser discutidas, no bojo de uma reforma tributária que permitisse ampliar a arrecadação sobre os mais ricos e simplificar o sistema. O conjunto de regras fiscais precisaria ser discutido, mas dentro de um contexto de expectativas razoavelmente ancoradas. É um caminho.
As reflexões, no entanto, parecem interditadas, maculadas por uma polarização pouco útil nessas questões tão complexas e técnicas. O debate não envolve apenas a questão econômica e orçamentária, mas também o lado jurídico. Até hoje, não há clareza sobre o funcionamento da Emenda 95 (teto de gastos). Como acionar as medidas de correção previstas para o caso de descumprimento dos limites de gasto? Elas precisam ser reforçadas?
De todo modo, o ajuste fiscal é necessário para que o País possa voltar a crescer. Sem controle das expectativas e um horizonte sobre a retomada das condições de sustentabilidade da dívida, nada feito. Que o digam os movimentos recentes nos juros cobrados sobre a dívida pública. O desafio é a recuperação do resultado primário, seja pela via da despesa ou da receita. Ao que nos parece, uma combinação dos dois lados será necessária.